Considerado a quintessência do filme noir, Pacto de Sangue (Double Indemnity) é desses filmes que reúne todas
as características desse gênero. Femme
fatale? Tem. Anti-heroi? Tem. Fatalismo da vida? Também tem. Tudo isso
conduzido por um roteiro inspirado em um dos maiores escritores noir: James M.
Cain.
O cinema noir
só ganhou status lá pela década de 60 quando os franceses (que tinham sido
proibidos de assistir a filmes americanos durante a 2ª guerra mundial)
descobriram esse jeito peculiar de contar história. Os noir iam contra os musicais e
filmes “água com áçúcar” de Hollywood, por isso não eram muito bem vistos pelos
críticos na época. O termo “noir” [negro em francês] foi cunhado pelos
franceses. Vale ressaltar que no momento em que esses filmes foram feitos, não
havia uma intenção propriamente dita de criar uma estética. No entanto, os
franceses e o tempo consagraram a tal da estética que caracteriza o filme noir.
O cinema noir
é um tapa na cara da sociedade americana. Considero-o uma resposta ao escapismo
da vida proporcionado pelo cinema. Como assim? Bem, os filmes, nesse momento,
eram em sua maioria musicais e melodramas, retratando uma vida americana
utópica. Contudo, o que acontecia na realidade era bem diferente: a grande
depressão, desencadeada pela crise de 29, e a 2ª guerra mundial mergulharam a
população na pobreza. Uma pobreza que era muito bem escondida pelas
propagandas e pelo american way of life
retratado pelo cinema. Portanto, os filmes noir vêm para mostrar essa realidade
suja da sociedade. Suas histórias, povoadas de corrupção e sexo, contestavam
esse modelo de viver.
Quando James M.Cain escreveu Double Indemnity, baseado na história
verídica do casal assassino Ruth Snyder e Judd Grey, ele não sabia que teria
tanto trabalho para um estúdio aceitar sua história. Quer dizer, a história
tinha sido comprada, todavia, nem a Paramount (que tinha o direito sobre o
conto) nem a MGM (que havia comprado os direitos de O destino bate a sua porta) conseguia achar um argumento que fosse
aceito por Joe Breen, o chefão da censura em Hollywood. Veio a 2ª guerra
mundial e o quadro mudou, tornando possível a execução do filme. Talvez fosse
algo profético: o filme deveria sair nesse momento. Sem mais.
Pacto de Sangue conta a história de Walter Neff
(Fred Mc Murray), um corretor de seguros, e de como sua obsessão por Phyllis
(Barbara Stanwyck) acaba com sua vida. Enfeitiçado pela loira, Walter aceita
assassinar o marido dela para receber o seguro de vida em dobro. O filme começa
com um carro atravessando a escuridão das ruas de Los Angeles. Parece uma
madrugada normal, só que não. Esse
carro passa o sinal vermelho e quase atropela um caminhão. Alguém está com
pressa. Opa, algo está errado. Billy Wilder, o diretor do filme, nos coloca o
problema logo de cara, embora ainda não saibamos o que ele é exatamente. Então
o carro para e, de dentro dele, sai um homem envolto em seu casaco. Ele entra
no prédio, depois no elevador e o clima de tensão vai aumentando. Isso acontece
porque o ascensorista começa a conversar com o personagem. Uma conversa banal,
mas que pelas respostas do seu interlocutor, percebemos que existe algo errado.
O personagem sai do elevador e vai até sua sala. Ele senta e enxergamos o
primeiro problema: opa, ele levou um tiro. Trata-se de Walter, que começa a
ditar a um gravador sua história. Outra característica do noir: a voice-off. O filme é inteiramente
contado em flashbacks e pela voice-off
de Walter, facilitando nossa entrada na mente do personagem. É um recurso
utilizado para que tenhamos acesso a sua visão em relação à história. Creio que
seja uma maneira unilateral de contar a história.

Não sei se é para amenizar o clima de tensão da
trama, mas geralmente os filmes noir
têm umas sacadas ótimas. O personagem Keyes é uma maneira de tirar a trama da
tensão. Outra coisa em relação às sacadas ótimas está relacionada aos diálogos
de duplo sentido. Com a invenção do Código de Censura, o negócio ficou difícil
para Hollywood. A censura pegava pesado. Nada de sexo, nem beijos muito
ousados. Resumindo: tinha de ser muito sutil. Wilder e Chandler conseguiram
transpor a tensão sexual para os diálogos do filme, como neste aqui que
reproduzo abaixo:
Neff: Gostaria apenas que me dissesse o que está
escrito na tornezeleira. [ele não parava de olhar para as pernas da personagem,
detalhe]
Phyllis: Apenas meu nome.
Neff: Que é?
Phyllis: Phyllis.
Neff: Phyllis, hum. Acho que gosto dele.
Phyllis: Mas não tem certeza.
Neff: Tinha de guiar à volta do quarteirão duas
vezes.
Phyllis: (levantando-se): Sr.Neff, por que é
que não passa por aqui amanhã à noite por volta das 8:30? Ele estará aqui.
Neff: Quem?
Phyllis: O meu marido. Estava ansioso por falar
com ele, não estava?
Neff: Sim, estava. Mas essa ideia está quase a
passar-me, se entende o que quero dizer.
Phyllis: Existe um limite de velocidade neste
Estado, Sr.Neff, 45 milhas por hora.
Neff: A que velocidade ia eu, Sr.Guarda?
Phyllis: Eu diria que a uns 90.
Neff: Suponhamos que saia da sua moto e me
passava uma multa.
Phyllis: Suponhamos que o deixava ir desta vez
só com um aviso.
Neff: Suponhamos que isso não é suficiente.
Phyllis:Suponhamos que tinha de lhe bater.
Neff: Suponhamos que eu começasse a chorar e
colocasse minha cabeça no seu ombro.
Phyllis: Suponhamos que tentasse colocá-la no
ombro do meu marido.
Neff: Isso acaba com o assunto...
Podemos interpretar o diálogo de duas maneiras:
ou eles falam sobre velocidade literalmente ou sobre velocidade em relação ao
flerte. Por isso, a censura não deve ter prestado atenção. Esse tipo de escrita
é chamada de “hard-boiled”. Também existem os diálogos hard-bitten, como a frase de Walter sobre Phyllis: “Nunca pensei
que assassinato pudesse cheirar a madressilva”. Existe algo de poético nessa
marginalidade do personagem e isso é mostrado também através dos diálogos.
O momento de clímax da trama acontece quando
Phyllis encontra-se com Walter para assassiná-lo. Ela dispara contra ele, mas
por algum motivo, ela não consegue descarregar a arma nele. Alguns críticos
consideram esse momento especial para o filme, pois é quando enxergarmos a
outra face da personagem. Walter vira o jogo e talvez esse seja o motivo pelo
qual Phyllis não consegue descarregar a arma. Quando ele era submisso a ela,
Walter era um zero à esquerda para ela. Mas no momento em que sua obsessão
parece evaporar, ela se apega a ele de uma forma um pouco maluca. É o descuido
de Phyllis que faz com que ela morra, pois a bala disparada por ele seria o
segundo tiro que o personagem deveria levar. Enfim, um final fatalista, bem ao
estilo noir.
Pacto de Sangue permanece como um dos filmes mais
cultuados do gênero noir e do diretor Billy Wilder. Encontro elementos desse
filme (o estilo, maneira de filmagem) em Crepúsculo dos Deuses, filme de 1951,
sete anos depois de Pacto. Woody
Allen inclusive homenageia-o em seu filme Um
misterioso assassinato em Manhattan. Ele e Diane Keaton vão ao cinema
assistir Pacto de Sangue e a trama tem uma leve inspiração no filme. Imperdível
para os amantes de uma boa trama.
Publicado por Jessica Bandeira
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