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sábado, 29 de março de 2014

Cidadão Boilesen (2009)



Em tempos de reavivamento da Marcha da Família com Deus as portas do aniversário – afinal, o que temos para comemorar? – dos 50 anos da implementação do golpe civil-militar, é necessário que falemos à exaustão sobre esse tema. Se as pessoas saem às ruas com cartazes com os dizeres “intervenção militar já!”, é porque existe uma lacuna não preenchida na formação delas. E essa lacuna diz respeito ao fato de silenciar, omitir ou simplesmente ignorar tudo que aconteceu durante a ditadura militar. É acreditar que vivíamos em um Brasil “melhor” naquela época, porque olha todas as obras que o presidente Médici fez! Só que o ninguém sabe ou prefere ignorar é o tremendo desvio de dinheiro que rolou nessa época para que o milagre brasileiro pudesse acontecer. É acreditar que naquele tempo não havia violência como hoje. E a censura, minha gente? A violência existia, mas como a imprensa estava censurada, ninguém ia colocar no seu jornal esse tipo de notícia para depois ter sua redação incendiada.

Sim, nós precisamos ainda falar muito sobre isso. Muito mesmo. E, neste caso, acredito que o cinema cumpra um papel crucial no que diz respeito à ditadura civil-militar brasileira. É preciso que existam filmes que tratem dessa época, que discutam o que foi esse período e seu impacto na vida dos brasileiros. Batismo de Sangue, Que bom te ver viva (já falei dele por aqui, você pode ler o post aqui: http://cine-espresso.blogspot.com.br/2013/08/que-bom-te-ver-viva-1989.html ) e Você pode dar um presunto legal são alguns desses filmes. Recentemente também tivemos A memória que me contam, da diretora Lúcia Murat, que dirigiu Que bom te ver viva. Esses filmes cumprem seu papel crítico de retratar esse período, além de poderem registrar para as gerações futuras que queiram conhecer mais sobre a história do seu país. O documentário Cidadão Boilesen também faz parte dessa gama de filmes, porém ao contrário dos outros que citei, ele nos leva para um lado pouco conhecido da ditadura: o apoio do empresariado paulista na luta contra o terrorismo e a subversão. Não é a toa que Cidadão levou 16 anos para ser concluído, sem apoio de grandes produtoras. Ninguém apoiaria um documentário que tocava numa ferida que muitos preferiam ignorar.


Em São Paulo, existe uma rua chamada Henning Albert Boilesen. Algumas pessoas são paradas nessa rua e indagadas se conhecem o cara que dá nome à ela. A maioria responde que não. Assim começa Cidadão Boilesen. A primeira vista, parece uma maneira singela de começar um documentário. Mas não é. Na verdade, trata-se de uma forma sutil de o diretor mostrar como ainda desconhecemos figuras importantíssimas para o entendimento do que foi a ditadura civil-militar por aqui. E como é conveniente que não saibamos quem foram, afinal... o que dizer desse presidente da Ultragaz, ultra carismático, mas que assistia sessões de tortura na OBAN? E que era amigo do Delegado Fleury, o homem por trás do Esquadrão da Morte? É muito fácil silenciar. Mas já chegaremos na OBAN, Fleury etc e tal.

Boilesen nasceu na Dinamarca e, após o casamento com uma brasileira, veio para o Brasil com uma mão na frente e outra atrás. Começou como contador na empresa de gás, a Ultragaz, e em menos de 10 anos já estava à frente da companhia como presidente. O documentário traz diversos depoimentos de amigos de Boilesen, tanto dinamarqueses como brasileiros. Ele é descrito como um homem carismático, que se adaptou muito bem ao jeitinho brasileiro e que adorava esse país. Além disso, era socialmente ativo, pois tinha um filho com deficiência visual, o que fez com que criasse iniciativas que trabalhavam com os jovens. Em suma, um homem íntegro, quase um César da antiga novela Amor à vida. Um exemplo.

Só que como César, foi só uma questão de tempo para que Boilesen revelasse seu outro lado. Um lado bastante obscuro. E ele veio no rastro com o golpe civil-militar de 1964. Senta que lá vem história.

Jânio Quadros e sua vassoura: queria varrer a corrupção do país.
Em outras palavras: ZUEIRA.
Todos sabem a bagunça que o Brasil se encontrava antes do golpe. Jânio Quadros, o presidente que proibira as brigas de galo, renunciou. João Goulart estava na China, fazendo contato com aqueles comunistas comedores de criancinhas. Goulart queria fazer suas reformas de base, frear o lucro das empresas estrangeiras aqui, o que não agradou de forma alguma os setores mais conservadores da sociedade. Do outro lado do mundo, os EUA estavam de olho em tudo que acontecia aqui. Não podemos ter outra Cuba, socorro! – teria dito o presidente Kennedy. A solução fora começar a apoiar um golpe para salvar o Brasil dessa ameaça. Os EUA colocariam seus navios no Porto de Santos, prontos para atacar, caso houvesse resistência ao golpe. No entanto, fora mais fácil do que eles imaginaram. Os tanques do General Olímpio Mourão Filho invadiram as ruas, Jango deu o fora e, voilà, o País estava salvo!

Para o professor Enrique Padrós, o comunismo fora mera desculpa para o golpe. O que realmente motivou tudo isso foi o objetivo de reconverter a economia aos padrões que interessavam aos EUA. E eles não poderiam fazer isso com um presidente que queria a REFORMA AGRÁRIA, né. E o que isso tem a ver com Boilesen? Tudo, meus amigos, tudo. Isso porque Boilesen fazia parte do setor privado, bastante interessado em não ter seus lucros reduzidos com os comunismos do presidente deposto. A Ultragaz era uma das maiores empresas de gás do Brasil.

Boilesen só começou a colaborar com a ditadura quando a coisa começou a ficar realmente preta: em 1969.

E apesar de o documentário ser sobre Boilesen, ele também se aplicaria a muitos outros empresários que também tiveram o mesmo comportamento. Por que Boilesen? Porque ele era bastante influente, estava sempre andando com militares, estava visado. Enquanto os outros estavam na surdina, ele estava em evidência. O que acabou lhe custando a vida. Continuemos.

Carlos Lamarca ensinando táticas de guerrilha.
Quando baixou o AI-5, suspendendo os direitos básicos dos cidadãos, as coisas começavam a ficar tensas para os militares. Os grupos revolucionários começaram a guerrilha urbana – a guerrilha rural se consolidaria no começo dos anos 70, acredito – . Assaltos a bancos pelos militantes desses grupos começaram a se tornar comuns. O governo ficou bege. Eles não estavam preparados para isso. Era preciso fazer algo. Os banqueiros estavam bastante amedrontados também, imagina esse bando de terrorista roubando meu dinheiro. Juntou-se a fome à vontade de comer.


 Neste contexto foi criado a OBAN (Operação Bandeirante) com o objetivo de frear o terrorismo. Ele foi o embrião do DOI-CODI, um dos órgãos mais repressivos da ditadura. Ok, agora precisamos de dinheiro para podermos trabalhar. Chama o empresariado paulista para contribuir aí. – pensaram os militares. E foi assim que Delfim Neto, o ministro da fazenda daquela época, convocou uma reunião com esses empresários. Enquanto Neto falava, a bandeja passava e os empresários depositavam seus cheques. Quando chegou a vez de Boilesen, ele pensou por alguns minutos e disse:

- Farei o cheque em dobro.

Lá pela metade do documentário, ficamos sabendo que Boilesen era um anti-comunista pra valer. Dá para ver. Ex-comandantes da OBAN declaram no documentário que Boilesen se sentia bastante à vontade naquele ambiente, indo inclusive almoçar com o pessoal da OBAN. Um homem muito querido, que cumprimentava desde os cabos até os coroneis.

No documentário, vários militantes declaram que Boilesen fora visto nas sessões de tortura e, eventualmente, participado delas. No entanto, não há nenhuma prova concreta de que isso tenha acontecido. Há depoimentos bastante controversos em Cidadão Boilesen, como o do Coronel Brilhante Ustra, comandante do DOI-CODI, ele só teria visto Boilesen uma vez na OBAN. O filho de Boilesen nega que o pai estivesse envolvido com as sessões de tortura.

Boilesen acabou pagando por um grupo, eu diria. Ele pagou porque estava em evidência, enquanto outros empresários se escondiam. Não que os comandos guerrilheiros não soubessem; pelo contrário. O documentário nos mostra que eles começaram a ficar desconfiados assim que companheiros conseguiam escapar de cercos e relatavam que sempre viam caminhões da Ultragaz por perto. Ligaram uma coisa a outra: a empresa contribuía para a caixinha. Carlos Lamarca teria escrito uma lista com três nomes de empresários que deveriam ser justiçados, entre eles Boilesen. Todos haviam lhe avisado, mas Boilesen não se intimidava. Negou segurança particular, dizia que podia resolver sozinho. Eis que um dia, dois carros o cercam em uma rua em um bairro nobre de São Paulo. E o fuzilam e metralham. Na época, a “brutalidade” do crime chocou as pessoas. Boilesen levara mais de 20 tiros, e só no final lhe deram um tiro de misericórdia em sua tempôra.

Boilesen deitado no chão, morto.


Depois de assistir ao documentário, percebi que o cerne da questão não é Boilesen, embora o documentário seja sobre ele. O cerne é a colaboração do empresariado paulista na sujeira da OBAN. E aqui podemos ver claramente o significado da palavra “ditadura civil-militar”. Ao contrário do que muitos pensam, a ditadura só se manteve porque os cívis a apoiaram, como o empresariado paulista por exemplo. A teia é bastante complexa. Empresas como a General Motors contribuíram para que se torturassem e matassem pessoas. Não é surpresa que queiram nos ocultar isso, que Cidadão Boilesen não seja conhecido como deveria.

É por isso que convido vocês a assistirem Cidadão Boilesen. Para que possamos ter um olhar menos ingênuo e mais crítico em relação ao período militar e suas múltiplas facetas. Não podemos culpar só os militares por tudo, uma vez que eles não fizeram a ditadura sozinhos. Por mais que isso nos doa. Não podemos deixar a memória para trás, embora existam muitas forças lutando para isso. Olhar para esse passado é um exercício de cidadania. Negá-lo é ingenuidade. Ainda que não tenhamos nascido nessa época, alguns de nós nascemos no período da abertura política, nós fazemos parte disso. Minha mãe até me hoje me conta sobre suas aulas de moral cívica na escola.

Que esse primeiro de abril não seja o dia da mentira, da negação; mas de reflexão sobre a memória que nos contam.


Publicado por Jessica Bandeira.

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