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segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Alma em suplício (1945)





Veda, I think I’m really seeing you for the first time in life and you’re cheap and horrible!

James M. Cain era a galinha dos ovos de ouro do cinema. Em três anos consecutivos três de seus livros seriam transformados em filme: Dupla indenização (1944), A história de Mildred Pierce (1945) e O destino bate a sua porta (1946). Não foi à toa, estávamos no auge da era noir do cinema e o público desejava grandes histórias. A história de Mildred Pierce carrega algo que poucos filmes noir tem: uma protagonista. Aos homens, o papel secundário. Alem disso, Alma em suplício é o primeiro filme de Joan Crawford na Warner Brothers, que lhe rendeu o Oscar de melhor atriz.

Minhas experiências ao ler livros adaptados para o cinema, especialmente depois de ter visto as adaptações cinematográficas 340 vezes, vão da surpresa à decepção. Há muito tempo que deixei de dizer a famosa frase “o livro é muito melhor que o filme”, pois acredito que se tratam de dois suportes diferentes. O livro funciona de um jeito e o filme de outro. Porém com A história de Mildred Pierce meu queixo simplesmente caiu. Porque, ao terminar de lê-lo, ficou evidente como esses dois suportes funcionam de formas completamente distintas. No livro você consegue odiar Veda ainda mais (e isso é possível? SIM, É!) , mas muito mais do que isso, a gente entende porque o romance foi mutilado. Em 1945 ninguém iria mostrar uma cena de estupro no cinema. Ninguém iria deixar o personagem sem levar o que ele merecia. A simples ideia de o vilão sair impune, nessa época, era inaceitável. Se o filme seguisse a risca o livro, duvido muito que fosse realizado.

Neste post tentaremos mostrar alguns pontos interessantes entre o livro e o filme, sem deixar de lado os bastidores, afinal Alma em suplício tem história pra contar, hein!


Alma em suplício (Mildred Pierce) começa como todo o filme noir que se preze: com o final. Assim como em Crepúsculo dos Deuses e Pacto de Sangue, nós já sabemos como as coisas terminaram. E elas terminaram mal – pra variar. Um homem é baleado enquanto Joan Crawford pega o carro e foge. Ela tenta se atirar no mar, mas um guarda noturno não deixa. Afinal o que está acontecendo? Por que ela tenta se matar? Mais tarde vamos saber que seu nome é Mildred, que seu marido foi assassinado e as evidências a apontam como culpada. Mas será mesmo? Será através do flashback, recurso muito utilizado no noir, que vamos entender como a situação chegou a esse ponto.

É interessante notar que no livro não temos assassinato algum. Por quê? Bem, tenho uma teoria de que Hollywood precisa punir suas personagens. Se não punir, o público não vai gostar. Então o assassinato em Alma em suplício é uma forma de punir uma das personagens do filme, que sai impune no livro. O que Cain faz em A história de Mildred Pierce é mostrar o lado mais sujo das pessoas, coisa que ele dominava bem. Mas com uma diferença: a sujeira vem da pessoa que  Mildred mais amava na vida. O livro termina de uma maneira triste, revoltante e degradante com a personagem principal tomando um porre na noite de ano novo.

As primeiras cenas de Alma em suplício nos tiram o fôlego! Junto à trilha sonora de Max Steiner, é claro. Aliás, a trilha merece destaque, pois ela faz um processo muito interessante de enganação. Como assim? Bom, se você não sabe sobre o que é o filme e começa a vê-lo, vai achar pela música de abertura que se trata de uma história de amor. A trilha vai seguindo até tornar-se sombria, assustadora, culminando com a morte de uma das personagens, Monty (Zachary Scott).

Joan Crawford andando pelo pier, lágrimas nos olhos, com as ombreiras de Adrian é antológico. Seus figurinos neste filme estabeleceram-na como ícone do século XX. Ela manteve o mesmo estilo que usara no filme: as ombreiras, sobrancelhas grossas e os sapatos amarrados no tornozelo. Esses sapatos eram carinhosamente chamados de fuck me.



As cenas em que Wally (Jack Carson) descobre o corpo de Monty na casa deste são um colírio para os olhos. O diretor, Michael Curtiz, utiliza jogo de luz e sombra para dar o ar macabro necessário à casa, que subitamente se transforma em um lugar claustrofóbico.

Mildred (Joan Crawford) e Veda (Ann Blyth).
Alma em suplício é a história dos sacrifícios de Mildred Pierce (Joan Crawford) para subir na vida, mas principalmente para dar à filha, Veda (Ann Blyth), tudo que a própria Mildred não teve. Aqui acontece um processo de inversão muito interessante. Geralmente nos filmes noir, nosso protagonista se arruína por causa de uma mulher. Ele a conhece, fica louco por ela, decide fazer tudo por ela e se lasca no final. Em Alma em suplício nossa protagonista sofre um milhão de reveses por causa da filha. Mildred suporta as humilhações, come o pão que o diabo amassou, casa-se por interesse por Veda. Particularmente acho bastante interessante porque isso mexe conosco. Digo, você não faria tudo por sua filha? É mais fácil identificar-se, acredito. É uma história de elementos noir, sim, é. No entanto, ela é calcada numa situação bem recorrente na vida real: até onde iríamos pela felicidade de 
nossos filhos?

O filme suaviza muitas coisas que o livro te joga como se estivesse dando um tapa na cara. Sabe a cena em que Mildred estapeia Veda na escada? É mais ou menos essa a sensação que você tem ao ler o livro. Por exemplo, as humilhações pelas quais Mildred passa para tentar arranjar um emprego são um milhão de vezes mais cortantes que as do filme. Seria difícil repetir no filme, pois você tem quase duas horas para contar uma história de 320 páginas. Cain nos traz um retrato muito cruel do que eram os EUA na época da Depressão. A família de Mildred se refestelou e faliu depois com a Crise de 29. O autor também mostra que a coisa não estava fácil para as mulheres também. Imagina se ele soubesse que ainda hoje continua não sendo tão fácil.  Em uma das cenas mais cruéis do livro, ele narra o que seria a vida de divorciada de Mildred: os homens a achariam uma presa fácil por sua condição e, depois que tivessem o que queriam, cairiam fora.


Os bastidores

Não poderíamos deixar de comentar os bastidores de Alma em suplício, pois está recheado de boas histórias! Esse filme foi o primeiro da fase Warner Bros. de Joan Crawford, e ela estava bastante nervosa ao ingressar no novo estúdio. Rejeitara vários scripts que não se encaixavam com o que esperava e não achava justo continuar recebendo para não trabalhar. Por isso pediu ao estúdio para cortar seu salário. Até que chegou Mildred Pierce.

Joan acreditava que Mildred era o papel de sua vida, muito mais do que isso, ele falava ao seu coração. Ela via muito de si mesma nessa personagem, identificava-se com a luta de Mildred para chegar ao topo.

Só que no meio do caminho havia uma pedrinha chamada Michael Curtiz. Ele achava que seria um inferno trabalhar com ela, logo opôs a sua escolha como Mildred Pierce. Curtiz também tinha horror aos ombros de Crawford, achava-os muito largos. Segundo Charlotte Chandler, Joan resolveu a situação oferecendo-se para um teste.

Crawford e Curtiz nos bastidores de Flamingo Road


O QUÊ????

Todos ficaram chocados. Jack Warner disse que uma estrela do calibre dela não precisava se submeter a isso. Contudo, Crawford insistiu e provou que era a atriz ideal para o papel.

Joan também persuadiu a Warner Bros. a escolher Ann Blyth para o papel de Veda (obrigada, Joan!). 
Eles não queriam, pois Ann estava de contrato com outro estúdio, a Universal, mas Crawford conseguiu trazê-la para o filme. Blyth é até hoje muito grata à Joan, que afirma que ela era como uma “maravilhosa irmã mais velha ou mãe”.

E, claro, ainda há um issue muito importante sobre os bastidores de Alma em suplício, provavelmente o mais importante: Bette Davis. O papel de Mildred fora oferecido à Bette que recusou.

“Você sabe porquê recusei Alma em suplício? Acho que eles não contaram isso a Srta. Crawford. Poderia não ter gostar de terem oferecido a ela o que eu recusei” – disse Bette Davis à Charlotte Chandler.

Crawford, sempre muito diplomática, afirma que entendia as razões de Mildred Pierce ter sido oferecido primeiro a Davis. Ela era a maior estrela na Warner, assim como Crawford um dia fora na MGM. Portanto era natural que oferecessem os maiores papéis a ela. A única coisa que irritava Joan era ser considerada uma estrela e não uma atriz. Depois de Alma em suplício, isso mudou. Ela finalmente foi considerada uma real actress, exatamente como Bette Davis.

Depois de tantos comentários, esperamos que tenham ficado curiosos para assistir a esse grande filme. É uma ótima oportunidade para conhecer melhor o gênero noir, já que estamos no noirvembro!

Publicado por Jessica Bandeira.

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