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segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Relíquia Macabra – O falcão maltês (1941)



No ABC do filme noir este filme é indispensável. Considerado o primeiro grande filme noir, Relíquia Macabra  é recheado de curiosidades e fatos improváveis. O romance entre Mary Astor e o diretor do filme, John Huston, e a pegadinha que John Huston aplicou em seu pai são alguns dos curiosos fatos que permeiam este clássico do noir. Mas acima de tudo, o filme deu as diretrizes para todos os detetives famosos que viriam a seguir. Sam Spade é o Sherlock Holmes do século XX e foi Bogart quem o imortalizou.

Recentemente tive a oportunidade de ler O falcão maltês, romance de Dashiel Hammett que inspirou o filme de John Huston. Eu já tinha assistido ao filme, há muito tempo atrás, e minha impressão não foi a melhor possível. Agora era uma questão de vida ou morte revê-lo depois de ter lido o livro. A surpresa não poderia ter sido mais positiva. O filme é tão fiel ao livro que chega a ser emocionante. Diálogos inteiros do livro foram colocados no filme, e se pensarmos que Howard Hawks disse a Huston que ele deveria “filmar o livro” isso faz todo o sentido. Porém, nossa intenção não é comparar livro e filme; e sim mostrar o que faz dele tão aclamado no mundo do noir.


Dashiell Hammett: o Sherlock Holmes do século XX

Dashiel Hammett. 
Sam Spade está para Sherlock Holmes, assim como Dashiel Hammett está para Sir Conan Doyle. As variáveis dessa equação maluca são difíceis de entender, se não tivermos em mente a evolução do romance policial. Até o momento, o policial era uma marca inglesa. As histórias de Agatha Christie e Conan Doyle se passavam em Londres, em geral nos meios mais ricos. O barato da história era o who dunnit? (quem matou?), o momento mais esperado do romance. Os americanos tomaram essa forma clássica dos policiais e a moldaram como convinha a sua época. Os policiais são narrativas que representam a época em que foram escritos. Antes de Hammett, a literatura pulp crescia nos EUA. Essa literatura barata, recheada de história infames sobre assassinatos, era representada pela revista Black Mask. Hammett publicou inclusive algumas histórias nessa revista. A grande mudança trazida pelos americanos está na ambientação do romance policial. Ele se situa na cidade grande, que não parava de crescer e crescer, no ambiente industrial. Poeira, muita gente, luzes de neon. O sonho americano. O romance policial americano joga o personagem principal dentro dessa cidade que mais parece sufocar do que qualquer outra coisa. A chave desses policiais está no sentimento de sufocamento vivido pelo personagem. O who dunnit não é a chave da história, apenas uma peça secundária que ajuda a entender o desconforto vivido pelo personagem. Em O falcão maltês temos a cidade de São Francisco que sufoca Sam Spade.

A metáfora do Falcão Maltês

O filme conta a história da perseguição a uma relíquia raríssima, o Falcão Maltês. A lenda diz que os templários de Malta enviaram ao rei da Espanha um falcão de ouro maciço como forma de agradecimento por poderem ficar com a Ilha de Malta. No entanto, ela foi roubada e seu paradeiro é desconhecido até hoje. Relíquia Macabra foi a estreia de John Huston dirigindo e aqui já podemos ver seu interesse por histórias que abordam a ambição, algo que seria retomado em O tesouro de Sierra Madre alguns anos depois. No encalço dessa preciosidade estão Sam Spade (Bogart), um detetive que cai de paraquedas no meio da confusão, Brigid O’Shaughnessy (Mary Astor), Joel Cairo (Peter Lorre) e Gutman (Sydney Greenstreet). Os últimos três personagens citados possuem uma ligação entre si. Que ligação é essa? Só vendo para descobrir! O filme pode ser lido como uma metáfora do sonho americano (olha o spoiler!)  e sua volatilidade. O sonho americano não existia, era uma invenção do governo para sustentar a imagem de uma nação em crise. Na época em O falcão maltês foi escrito os EUA estavam em plena crise de 29. Ou ainda podemos ler Relíquia Macabra como uma metáfora dos sonhos em geral, do que fazemos para alcançá-los. Isso se torna bastante evidente quando, no final do filme, perguntam a Spade o que ele tem nas mãos: Aquilo [o falcão] de que os sonhos são feitos.

Joel Cairo e a representação dos homossexuais no cinema

Joel Cairo, magistralmente interpretado por Peter Lorre, é uma personagem homossexual no meio de uma história onde os homens provam sua “macheza” distribuindo tiros e socos. Temos a sensação de que ele está deslocado. No livro, logo que Cairo entra no escritório de Spade, a descrição de Hammett já nos coloca alguns indícios de que ele é homossexual:
Segurava um chapéu preto de jóquei-clube na mão coberta por uma luva de camurça e avançou na direção de Spade com passinhos curtos, afeminados, saltitantes. A fragância de chypre o acompanhava.
A fragância de chypre é algo que vai acompanhar a personagem o tempo inteiro no livro. No filme, quando Spade revista as coisas de Cairo e acha o lenço com a fragância, ele cheira e faz uma cara de quem diz: só podia ser. Talvez no filme a homossexualidade de Cairo é suavizada, mas não passa despercebida por nós. Desde a pistola até as roupas usadas por ele são indícios de seu caráter “afetado”. A pistola é um elemento bastante interessante, trata-se de uma arma pequena, delicada e que poderia muito bem pertencer a uma mulher. Portanto, o que Hammett e Huston fazem é reforçar estereótipos em relação aos homossexuais. Eles são afetados, motivo de riso e afeminados. Ponto. Eles só estão ali para nos fazer rir. O cinema é uma arma muito poderosa que plantou na mente das pessoas que  essa é a única face dos homossexuais. Joel Cairo é uma figura masculina “frágil”, logo deslocada no filme. Infelizmente, em Relíquia Macabra não fica muito claro porquê Brigid e Cairo começam a se estapear. Já no livro isso é bem claro: ela o provocou e ofendeu sua sexualidade.

Relíquia Macabra continua sendo um must see dos filmes noir por sua contribuição ao gênero. Desde a iluminação escura até a concepção da femme fatale, esse filme inspirou muitos diretores que marcaram época com seus noir.  A adaptação fora tão bem sucedida que a Warner Bros tentou produzir uma sequência, Three Strangers. No entanto, Dashiel Hammett possuía o direito dos personagens – embora o direito da história pertencesse a Warner – e o filme teve de ser rodado com personagens diferentes.


Curiosidades:
  • Bogart teve de usar as próprias roupas durante o filme. Essa era uma prática comum na Warner Bros para economizar dinheiro;
  • A Warner não gostava que os atores fumassem feito chaminés nas cenas (comofas). Para provocá-los, Bogie propôs aos outros atores que fumassem sempre que possível, o que deixou os executivos furiosos na hora que viram os copiões. Huston conseguiu convencer o estúdio de que o cigarro fazia parte do clima de tensão, assim conseguiu que as cenas não fossem cortadas;
  • Quando conseguiu o papel da Ilsa de Casablanca, Ingrid Bergman estudou a atuação de seu partner de cena assistindo Relíquia Macabra;
  • George Raft recusou o papel de Sam Spade por achar que Relíquia Macabra não era um filme importante. O ator era conhecido por sua ausência de percepção, pois também recusou o papel de Walter Neff em Pacto de Sangue. Na realidade, George não queria estar nas mãos de um diretor estreante;
  • O filme foi rodado em sequência;
Publicado por Jessica Bandeira.

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