Nada mais certeiro do que os créditos de abertura de As ligações perigosas serem um tabuleiro de xadrez. A metáfora utilizada pelo diretor Roger Vadim poderia resumir o filme e até mesmo a vida. No xadrez cada movimento que fazemos necessita de precisão. Ele deve ser calculado, as perdas e o ganho de mexer nessa ou naquela peça. Em As ligações perigosas, as pessoas são as peças, mas quem é a jogadora? Bem, digamos que ela seja nada mais nada menos do que Jeanne Moreau.
A releitura de Roger Vadim do romance epistolar de Choderlos de Laclos gerou polêmicas, o que é interessante se pensarmos que já estávamos as portas dos anos 60. Como uma adaptação livre de um romance mais velho que a sua avó poderia ainda chocar as pessoas? Simples, é só ambientá-lo na Paris dos ricaços e colocar Jeanne Moreau no papel principal, que era considerada uma mulher indecente para a época. Mas logo falaremos sobre isso. O resto deixe por conta da palavra “adaptação” que por si só suscita discussões ferrenhas.
O que acho mais sensacional em se tratando de As ligações perigosas é o fato de sua história ser atemporal. É uma história de intrigas, de ciúmes e egos. Talvez por isso seja tão fácil transpô-la para os dias de hoje. No livro temos a troca de cartas entre o Visconde de Valmont e a Marques de Merteuil, dois aristocratas ociosos que seduzem e enganam membros da corte por puro prazer. Esse jogo de sedução chegará ao seu nível extremo quando um deles se apaixonar de verdade e isso despertar a ira no outro. Valmont e Merteuil declaram guerra e é claro que a coisa não termina bem no final. No filme os dois aristocratas viraram um o casal Juliette (Jeanne Moreau) e Valmont (Gérard Philipe em um de seus primeiros filmes), um brilhante diplomata.
Um aspecto que, para mim, justifica o alvoroço causado pelo filme na época de seu lançamento é justamente o fato de os dois vilões serem casados e terem um relacionamento aberto. As regras são bastante claras: cada um fica com quem quiser, mas não pode se apaixonar. Além disso, o casal é bastante hipócrita e podemos ver isso na primeira cena do filme, quando uma festa está acontecendo na casa deles. Valmont e Juliette brincam de ser o casal perfeito e Vadim nos mostra isso de uma maneira fantástica: através dos convidados da festa. Quando o filme começa, Valmont e Juliette ainda não aparecem, mas ouvimos falar deles pelos convidados. “Talvez ela sempre tenha sido virtuosa”, “O preto lhe cai bem” e outros comentários do tipo são soltados pelos convidados até o momento em que a câmera nos apresenta Jeanne e Gérard. Eles conseguem sustentar a hipocrisia muito bem, o que deveria acontecer com muitos casais naquela época. Mas lá pelas tantas, Juliette some da festa para atender uma ligação… e, bum, descobrimos que seu casamento é de fachada. Valmont aparece em cena e eles começam a conversar sobre os amantes de Juliette (pensem nas plateias dos anos 60 assistindo tão descaradamente uma mulher falando sobre os homens com quem se deita). O estilo da ruptura é o charme da ligação – ela diz quando indagada se já rompeu com um de seus amantes. Outra cena que deixa os conservadores de cabelo arrepiado e que corrobora essa relação especial entre o casal é quando o amante americano de Juliette, Jerry Court (Nicolas Vogel), liga para esta última e, enquanto ela está falando no telefone com ele, Valmont está lhe agarrando. Estou com meu marido, ele está me beijando… é brincadeira! – ela diz. A relação amorosa para eles é como um jogo de xadrez e cumplicidade entre eles se dá justamente porque não se apegam a esses amantes.
Valmont acaba tendo de viajar e encontra sua prima, Cécile Volange (Jeanne Valérie). A mocinha está prestes a casar com Danceny (Jean-Louis Trintignant). Então, como distração, ele resolve seduzi-la e tirar-lhe a virgindade. Assim, como no romance, ela se tornaria uma “mercadoria usada” para o casamento. Valmont conta todo o processo de seduzir a prima através de cartas endereçadas a Juliette. Tudo está indo muito bem até a chegada de Marianne Tourvel (Annette Vadim). Ela é o oposto daquilo com o qual Valmont está acostumado. Inspira inocência e bondade. No começo, Valmont a encara como um jogo de sedução, porém as coisas saem de seu controle e, aos poucos, ele vai se apaixonando por ela. Juliette começa a perceber e não gosta nada. Como uma boa jogadora, ela mexe os pauzinhos para minar essa relação. Toda a cumplicidade do casal está por um fio. A tensão culmina em uma cena final eletrizante e talvez até um pouco moralista.
Aliás é quando essa tensão começa a crescer que temos acesso ao caráter dúbio da personagem Juliette. Talvez esse seja um dos melhores triunfos de As ligações perigosas, mostrar que a vilã do filme tem sentimentos, apesar de ser uma exímia jogadora de xadrez nessa partida chamada “vida”. A vingança dela mostra que, apesar do relacionamento aberto, ela na verdade era realmente apaixonada por ele. Jeanne Moreau sustenta muito bem esse caráter dúbio da personagem, sua frieza se mistura com seu sentimento por Valmont. Ela nunca sai do salto, nunca perde a chance de dar uma gargalhada de vingança gostosa, no entanto sabemos que ela está fazendo tudo aquilo muito mais por amor do que por vingança.
Esse filme veio logo em seguida de Os amantes, em que Jeanne Moreau, também havia atuado e incendiado as conservadoras plateias francesas. Aliás, eu me pergunto em que filme ela nos incendeia com sua atuação apaixonada e perfeita. Talvez ela tenha ficado conhecida na época como la pute respectuese (a puta de respeito), parodeando Sartre, por causa de suas escolhas cinematográficas. Jeanne não gostava de trabalhar com o convencional, muito menos Vadim. Creio que ele a escolheu por causa desse quê de polêmica também. Não vejo atriz mais perfeita para interpretar uma personagem tão dúbia quanto Juliette.
As ligações perigosas dividiu a opinião francesa. Alguns amaram, outros odiaram. Abaixo reproduzo dois comentários extraídos do site da Cinemateca Francesa, onde é possível consultar as críticas de vários filmes franceses publicadas em jornais e revistas da época:
Aqui está um filme que honra a produção francesa. Sim, As ligações perigosas é um filme inteligente, com grande qualidade e o trabalho de adaptação e transposição da história para nossa época jamais trai o autor. (Le canard enchâiné, 16/09/1959)
As ligações perigosas causou polêmica, mas se trata de um filme medíocre e um escândalo infundado. (Radio Cinéma Télévision, 27/09/1959)
A adaptação da obra de Choderlos de Laclos abriu as portas para as outras 10 adaptações (fiquei chocada quando soube disso!). Não importa se elas se passam na época em que o livro foi escrito ou atualmente, pois a essência do romance epistolar continua ali. Cá para mim, que já viu três adaptações diferentes de As ligações, prefiro a de Vadim. Depois de E deus criou a mulher, o homem ainda queria mais zueira. Dizem que esse filme foi uma tentativa de inserir a perversão no cinema francês. A tentativa foi bem sucedida e se o objetivo era chocar, ele foi atingido. As ligações foi censurado e depois só podia ser exibido para plateias maiores de 16 anos. Ler a perversão é uma coisa, ver é outra. Talvez isso tenha motivado a censura… Ninguém queria admitir que ela fazia parte da sociedade, que alguns casamentos eram calcados na hipocrisia. Em 2014, talvez esse filme não nos choque tanto, uma vez que o que nos surpreende hoje é bem diferente do que aquilo que surpreendia as plateias dos anos 60. Porém, As ligações perigosas permanece um must see do cinema francês e eu desafio você a não se encantar com o fogo e música de Jeanne Moreau.
Publicado por Jessica Bandeira.
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