Ou os homossexuais eram motivo de piada nos filmes ou simplesmente apagados. Não havia meio termo. De vez em quando, uma Greta Garbo dava um selinho em outra moça e Marlene Dietrich também, mas tudo fazia parte do burlesco, da arte, era só um momento. Não era assunto para um filme. O romance homossexual não era assunto de filme. Os anos 60 iriam derrubar, aos poucos é verdade, este muro de silenciamento.
Essa época foi um momento de incerteza para Hollywood. A era clássica estava terminando, não estava mais dando os mesmos lucros de antes, a televisão parecia o canal. Não é a toa que uma das protagonistas de Pelos bairros do vício partiu para a televisão depois desse filme, que fora o último de sua carreira no cinema. O fato é que estava difícil. Não foram só os atores e atrizes que envelheceram, mas o que chamamos de cinema clássico também. Era preciso reinventar antes que Hollywood fosse à bancarrota.
Infâmia (1961) de William Wyler abriu as portas para que o amor gay pudesse ser retratado no cinema. Você pode me dizer: “tudo bem, mas e Festim Diabólico de Hitchcock? Os protagonistas eram claramente homossexuais!”. Sim, só que o filme não foca o relacionamento deles; e sim o amigo assassinado e escondido por eles dentro de um baú. Aliás, os personagens homossexuais sempre eram depravados e maus. Ainda que Infâmia tenha aberto essa porta, as protagonistas tinham vergonha de sua sexualidade. Infelizmente Pelos bairros do vício também trabalha dessa forma. E isso os filmes demoraram a mudar. O importante é que, apesar dessas representações horrorosas, o amor gay está ali. A população LGBT existe e não será o silenciamento de Hollywood que anulará esse fato. Pelos bairros do vício mostra o amor homossexual, e o mais importante: uma atriz do calibre de Barbara Stanwyck intepretava uma das personagens gays. Como assim?
Pelos bairros do vício (Walk on the wild side) já começa nos ganhando pelos créditos de abertura SENSACIONAIS, que só podiam ter sido idealizados por Saul Bass, um cara que já trabalhara com Hitchcock e criou os inesquecíveis créditos de abertura de Psicose. Bass conta que decidira tomar um elemento conhecido por todos, no caso o gato, e recriar a imagem que temos dele. Na abertura de Walk on the wild side, temos um gato preto andando e a maneira como é filmado e sua sombra nos dá a impressão de que ele é muito maior do que aparenta. Mas o gato não anda como qualquer gato, Saul quis que o bichano andasse mais devagar, como um leão ou um leopardo. De repente o gato preto encontra um gato branco e eles começam a se engalfinhar. O gato preto representa o sub-mundo, esse wild side enquanto o branco representa a inocência e pureza. A música de Elmer Bernstein contribui para a grandiosidade dessa abertura. A música vai crescendo conforme o gato preto vai caminhando, até virar um jazz. O jazz quase sempre é utilizado para dar um caráter mais sexual na cena ou no filme… E se Walk on the wild side se passa em New Orleans, o jazz faz ainda mais sentido.
O filme conta a história de Dove Linkhorn (Laurence Harvey), que após a morte de seu pai, decide procurar um amor nunca esquecido, a sua querida Hallie Gerard (Capucine). Dove parte para New Orleans em busca dela. Só que ao chegar lá descobre que ela trabalha em um bordel chamado Doll House, administrado por Jo (Barbara Stanwyck).
A figura de Dove é interessante. Eu o vejo como o salvador, o homem dos bons princípios. Ele e Teresina (Anne Baxter, maravilhosa neste papel menorzinho) são as únicas pessoas “decentes” do filme. Dove vai para New Orleans “salvar” Hallie. Mas do quê? Bem, salvá-la da “sujeira na qual ela vem se refestelando há anos” nas palavras de Jo. Essa sujeira não é apenas a prostituição, mas o lesbianismo também. Lá pelas tantas, ficamos sabendo que Jo acolheu Hallie e que existe um relacionamento bastante íntimo entre elas. Isso fica bastante claro desde a primeira cena, pois Hallie é tratada a pão de ló pela cafetina. Uma das coisas que mais gosto no cinema são as elipses, o não dito. Em nenhum momento a palavra “lésbica” é pronunciada, mas as atitudes e gestos dizem tudo que essa palavra não pode dizer. A maneira como Jo olha para Hallie já diz o indizível. E os diálogos, ah, os diálogos também dizem sem dizer. Há uma cena bastante interessante, um embate entre Jo e Hallie, em que esta última é confrontada sobre sua sexualidade. Fale pra ele como são as noites de Hallie Gerard, fale sobre a sujeira na qual você tem se refestelado durante todos esses anos! – diz Jo. Hallie responde: Eu irei mudar. Ele vai me perdoar. É claro que a sujeira só poderia ser o relacionamento homossexual entre as duas e a prostituição, claro. A protagonista deveria ter vergonha daquele comportamento senão a plateia não simpatizava com ele. A vilã, Jo, não precisa ter vergonha de sua sujeira, afinal… ela é a vilã, não? Aqui temos um exemplo daquilo que falei lá em cima: a representação torta da homossexualidade. A plateia só tolera o lesbianismo porque ele acontece dentro de um bordel, um lugar à margem da sociedade. Ali é o lugar perfeito para esse tipo de comportamento. Fora do bordel NÃO pode. A mocinha precisa se salvar dessa, do contrário, a plateia não vai comprar e ponto final. No entanto, consigo imaginar as plateias saindo do cinema indignadas mesmo assim.
O confronto entre Jo e Hallie.
Jo( Barbara Stanwyck) |
Jo é uma personagem tão interessante (minha preferida!) que merece um parágrafo só para ela. Não é a toa que a vilã é lésbica, como tinha dito antes, os personagens gays sempre são maus e depravados. Como se sua sexualidade definisse seu caráter. Ela é durona, ela é a cafetina, ela manda nos homens. É tão triste ver que a uma personagem feminina com essas características só lhe resta o papel de vilã. É permitido a Jo ser lésbica, ela é dona daquela sujeira chamada bordel, o que esperar? Me chama a atenção os sentimentos dela por Hallie, que beiram o doentio. É interessante notar que o amor entre duas mulheres, nos filmes antigos, sempre tinha de ter um caráter depreciativo. Nesse caso o sentimento é doentio. O que, no entanto, não nos tira a comoção com Jo. Às vezes o espectador tem a sensação de que Jo está se rasgando de tanto amor. E, como ela é a vilã, não tem problema que seu amor por outra mulher seja mostrado de forma tão explícita, como no diálogo em que ela diz: This place needs you, I need you. Tudo isso com lágrimas nos olhos, com a voz grave de Barbara Stanwyck que se atira no chão implorando por um pouco de atenção. Aliás, é tão gostoso ver uma atriz do calibre de Stanwyck interpretando uma personagem homossexual. Por quê? Bem, imaginem vocês “arriscar” a carreira fazendo um papel desses. O último papel de sua vida: uma lésbica. Oh! Em 1962, havia muito o que perder. Contudo, o que aconteceu foi exatamente o contrário: Barbara foi muito respeitada por esse papel e se tornou um ícone do mundo gay.
Para terminar, queria dar duas palavrinhas sobre o lugar onde a ação se dá: New Orleans. O sul dos EUA exerce, em geral, um fascínio sobre os americanos. Eu vejo o sul dos EUA como um lugar com uma força sexual gigantesca. É de lá que vieram Blanche Devereaux (personagem da série The Golden Girls), Scarlett O’Hara e Blanche Dubois… representantes do estereótipo da mulher sulista. New Orleans representa essa força, com seu French Quarter, o jazz muito alto, aquele calor. Muito calor. O calor parece acentuar a lascividade das pessoas por lá. Parece ser um lugar onde tudo é permitido. Quer lugar melhor para abrigar os personagens de Walk on the wild side, marginalizados pela sociedade?
Enfim, um filme que vale ser visto pela coragem de abordar temas tão abafados de forma tão aberta. E claro, não poderíamos deixar de citar a abertura de Saul Bass, um colírio aos olhos. Também para refletirmos sobre as representações da sexualidade em Hollywood, como elas mudaram de 1962 para cá.
Curiosidades:
- Capucine, que interpretou Hallie Gerard, era modelo e trabalhou em diversos filmes, como em A pantera cor de rosa, ao lado de Peter Sellers. Teve uma morte trágica: atirou-se do oitavo andar de seu apartamento na Suíça.
- Anne Baxter estava grávida na época em que Walk on the wild side foi rodado.
- Capucine recusava-se a beijar Laurence Harvey, alegando que este não era homem suficiente para ela. Harvey teria dito que beijá-la era como beijar o bico de uma garrafa de cerveja.
- O filme foi inspirado em um livro do autor americano, Nelson Algren (que teve uma história de amor com ninguém mais ninguém menos do que Simone de Beauvoir).
Publicado por Jessica Bandeira.
Você pode me falar onde viu o filme ?????
ResponderExcluirOlá, obrigada por comentar por aqui :)
ExcluirEntão, eu assisti ao filme nessa plataforma do governo americano: https://archive.org/details/WalkOnTheWildSide1962
Nela, você pode assistir gratuitamente a vários filmes clássicos. (PS: tem muita coisa bacana da Missy por lá, aproveitando que me parece que você é fã dela!)
Outra coisa: não utilizamos mais a plataforma Blogspot, então se você quiser ler outras resenhas sobre filmes dessa maravilhosa que é a Missy, entra no http://www.cineespresso.com
Um abraço, espero ter ajudado!