Sábado, 8 de novembro. Porto Alegre amanhece parecendo Londres. Saio de casa e quase não consigo enxergar o que está a minha frente por causa da neblina. Vai chover, eu pensei. Porém, lá pelas 10h, o céu está claro, muito sol. Porto Alegre e seu tempo bipolar. À tarde aquele calor infernal. Durante a semana inteira, Patrícia (nossa mais nova parceira de Cine Espresso) e eu planejamos nossas perguntas para Antoine de Baecque, o homem Truffaut.
Antoine de Baecque. |
Antoine escreveu a biografia mais completa sobre François Truffaut, é historiador e ministra aulas na École Normale, uma das instituições mais respeitadas francesas. Todo cinéfilo sonha com o dia em que poderá encontrar alguém que lhe sacie curiosidades, especialmente se elas estão ligadas a suas atrizes francesas favoritas, Fanny Ardant e Jeanne Moreau. Nem dava para acreditar que eu estava indo vê-lo. Só acreditei ao chegar no lugar e vê-lo encostado num cantinho da sala.
Quem olhava de longe achava que ele estava naquele cantinho fazendo pouco de si mesmo. Um cara como qualquer outro, com um casaco naquele calorão de Porto Alegre. Coitado, eu pensava, escolheu uma péssima época para vir pra cá. Nem parecia o “homem Truffaut” naquele cantinho, como se o fato de escrever uma biografia sobre um dos homens mais fascinantes do cinema francês, de ter sido diretor dos Cahiers Du Cinéma durante alguns anos não fosse nada. Mas, para mim, significava muito. Não tenho a ambição de ser editora dos Cahiers, porém historiadora de filmes (e isso existe?) é algo que sempre me atraiu muito. Tentava bancar a fangirl discreta, conversando com a Patrícia pelo celular, e estava dando certo. Até a conferência começar.
Quando a conferência começou, não conseguia tirar um sorriso idiota do meu rosto. Era como se ele estivesse congelado ali. Eu ouvia a palestra sem os fones da tradução simultânea, por alguns momentos foi difícil se concentrar, pois ouvia a voz da intérprete nos fones alheios.
Naquele sábado estava mais sensível do que nunca. Então quando Antoine de Baecque disse que Truffaut achava que o cinema o havia salvo, uma lágrima tímida se formou nos meus olhos. Porque também me sentia salva pelo cinema. Começo da adolescência: espinhas estourando no rosto feito pipoca, o corpo mudando, amores começando. O cinema foi um bálsamo para os eternos sentimentos de não aceitação em grupos que tive durante essa época. Crepúsculo dos Deuses, de Billy Wilder, abriu a porta mágica de um mundo fascinante. Às vezes acho que vivo mais nesse mundo do que aqui. Vai saber.
Durante as duas horas de palestra descobri um outro Truffaut. O Truffaut da infância difícil, da relação conturbada com a mãe. O Truffaut que tinha uma obsessão com documentos da própria vida. Ah! E sem falar do método “caixa de sapatos”: toda vez que ia fazer um filme, ele largava dentro de uma caixa de sapatos tudo que pudesse ser usado. Imagino o que essas caixas de sapato não deveriam ter! No entanto, a revelação que me mais tocou foi a do “quarto do amor”.
O “quarto do amor” era uma espécie de quarto verde do Truffaut. Pelo que entendi ele guardava ali coisas de seus antigos amores. Isso me atiçou a curiosidade, o que será que ele deveria ter de Jeanne Moreau e Fanny Ardant? Acho que o quarto foi reproduzido recentemente na exposição da Cinemateca Francesa, que está com uma programação linda dedicada ao Truffaut.
A sensação que tive durante a conferência foi a de estar diante de um homem com tantas angústias como qualquer pessoa. Temos o costume de endeusá-los, criarmos nossas próprias convicções sobre eles. Tudo menos enxergá-los como pessoas normais. Como seria possível? A diferença é que Truffaut largava suas angústias em seus filmes, ele criou um alter-ego, Antoine Doinel, para falar delas. Muitos anos depois, François descobriu que era filho bastardo por parte de pai. Antoine de Baecque fez um paralelo bem interessante entre essa descoberta e O Último Metrô, que trata sobre um diretor judeu escondido num porão durante o período da Ocupação.
Talvez estivesse sensível demais nesse dia, no entanto a sensação que me invadiu foi a mesma de anos atrás, quando assisti Crepúsculo dos Deuses pela primeira vez: a de ser confortada. A fala de Antoine confortou meu coração, que às vezes não sabe o que fazer diante das possibilidades que a vida oferece. Ouvindo-o falar que Truffaut assistia três filmes por dia, senti-me entendida. Eis alguém que não se cansava nunca de assistir filmes. O amor pelo cinema é algo inexplicável.
Depois que a palestra terminou, muitas perguntas interessantes foram feitas. Vencida pela minha timidez e incredulidade (quem diria que Truffaut e eu teríamos algo em comum?), acabei não perguntando nada.
Vou confessar que chorei cachoeiras pela timidez ter me paralisado ao ponto de não conseguir perguntar nada. Agora que tudo está mais calmo, consigo entender que só o fato de ouvir sua fala já me faz uma pessoa pra lá de sortuda. Antoine, sei que você nunca vai me ver na vida, mas saiba que sua conferência só avivou ainda mais minha vontade de estudar cinema. Enquanto você falava sobre o amor do Truffaut pelo cinema (quase chorei quando mostrou trechos de A noite americana, onde esse amor fica bastante evidente), da fundação dos Cahiers du Cinéma por aqueles jovens alucinados por cinema, percebi que nada me faz mais feliz do que ver filmes e ler sobre eles. É um dos poucos momentos em tudo parece fazer sentido.
Obrigada por finalmente me dar a coragem necessária para assumir meus sonhos e correr atrás deles.
Publicado por Jessica Bandeira.
Mais do que a simples análise de uma conferencia...a convicção de um amor incondicional pela 7a. arte!
ResponderExcluirQue isso te impulsione na busca do que te faz viva e feliz!!