Ontem a noite sonhei que voltava à Manderley.
Já eu, ontem a noite, executei uma das tarefas pendentes desde janeiro deste ano: reassistir Rebecca, a mulher inesquecível. Isso porque tive a chance de ler o livro durante as férias, o que gerou um amor tão grande pela autora, Daphne Du Maurier, que comprei mais dois livros seus (ambos adaptados para o cinema também, sabe-se lá quando poderei falar sobre eles). Além disso, havia o fator Joan Fontaine, Lawrence Olivier também estava no elenco e tudo isso dirigido por nada mais nada menos que Hitchcock. Bora lá.
A primeira coisa que me chamou bastante a atenção quando li Rebecca foi o sentimento de inferioridade que a personagem principal experimenta ao longo do romance. Gostaria de poder nomeá-la, mas Du Maurier sequer deu um nome a ela. Interessante essa estratégia. Ela é tão insignificante que nem nome tem? Pode ser. Logo que a história começa, somos atualizados da vida marasmática que a personagem leva como dama de companhia de Mrs.Van Hopper. Essa simpática (só que não) senhora rica passa o tempo gastando dinheiro e humilhando sua dama de companhia, que não tem classe, se veste mal e passa o tempo inteiro desenhando. Ou sonhando. Como narradora da própria história, podemos sentir junto com a personagem esse mal-estar. Como leitora, eu sempre achava que havia um limite para o mal-estar da personagem, mas estava errada. Du Maurier nos mostra que ela nunca poderia largar esse sentimento, que só vai crescendo ao longo da história. Mrs. Van Hopper e sua dama de companhia estão em Montecarlo e é lá que encontrarão Max de Winter, um nobre que não parece ser de muitos amigos. Van Hopper não percebe e tenta fazer a íntima durante um encontro casual, no entanto, ele só tem olhos para nossa protagonista sem nome.
Joan Fontaine foi de longe a escolha mais acertada para o papel dessa protagonista. Muitas atrizes fizeram o teste para o tão disputado papel como Vivien Leigh (esse teste está disponível no Youtube), Margaret Sullavan e até a irmã de Fontaine, Olivia de Havilland. Joan consegue trazer toda esse sentimento de insegurança da personagem dos livros para a tela. E não estamos falando apenas das palavras, mas de sua postura em geral. As roupas, a maneira de andar, o jeito irritante como ela faz sua cara de tonta, tudo isso é orquestrado de tal forma que realmente acreditamos na falta de atributos daquela mulher. E talvez seja isso que nos cative mais em seu personagem: a falta de tudo. Falta classe, falta beleza, falta o savoir-faire. Sua personagem cativa, ao meu ver, porque exerce uma identificação conosco. Quantas vezes não nos sentimos deslocados? Como se não pertencessémos ao lugar X ou Y? É interessante termos uma protagonista como essa em um filme clássico. Estamos acostumadas com as heroinas de Bette Davis ou Joan Crawford, que são fortes, audaciosas e cheias de iniciativa. O personagem de Fontaine vai contra tudo isso, talvez por isso em muitos momentos ela nos irrite. A estratégia de Maurier de não nomeá-la talvez tenha essa função da identificação. Ela poderia ser qualquer um de nós. O fato é que De Winter irá se interessar por ela, a sem graça, (por que isso me lembra TANTO histórias estilo high school?) e aí, meus amigos, a história vai começar mesmo.
É interessante perceber como o filme e o livro trabalham de maneiras diferentes. No filme, Max e a moça encontram-se quando ela sai para desenhar e o encontra à beira de um penhasco, como se estivesse pronto para se atirar. Ele fica olhando fixamente para o mar. Já no livro, os personagens se conhecem durante um café, em que Mrs.Van Hopper causa vergonha alheia o tempo inteiro, tentando fazer a íntima com Max. É como se o filme já introduzisse suas duas palavra chaves: mar e suicídio. E também é como se ele antecipasse a tensão entre dois mundos e personalidades completamente diferentes. Essa cena a mais – já que a cena do café também se repete no filme – tenta elucidar aquilo que o livro deixa em nebulosa, no caso o caráter De Winter. Depois desse primeiro contato, os personagens começam a se conhecer melhor, uma vez que Mrs.Van Hopper pega um resfriado e dispensa sua dama de companhia. O flerte entre eles acontece como um raio. E já dizia Catherine Deneuve: em um relacionamento, sempre há a parte que ama mais do que a outra. Nesse caso, a nossa protagonista inomeável se apaixona perdidamente por Maxim, tem amor de sobra para os dois. Sua companhia é um bálsamo para sua alma, a faz sonhar com uma vida diferente daquele marasmo e humilhação ao lado de Mrs.Van Hopper. No entanto, uma carta de Nova Iorque frustrará os planos de aproveitar mais a companhia de Maxim. O casamento da filha de Van Hopper apressa a volta da personagem inomeável. E é neste contexto que Maxim a pede em casamento. Parece, aliás, que ele só a pede em casamento porque ela pretende ir embora e nunca mais vê-lo. É assim que os pombinhos de casam e vão morar em Manderley.
Aí o inferno de Fontaine – e o nosso também – vai começar.
Assim que chega à Manderley, nossa protagonista começa se dar conta que o forte amor que sente por De Winter não será suficiente para aguentar uma mudança tão brusca de mundo. A primeira evidência disso está na cena em que o casal é recebido pelos 094094 criados da casa. Fontaine faz AQUELA cara de sonsa que só ela sabe fazer , como quem diz: O que faço com todas essas pessoas? No meio delas está sua maior rival, a mulher que mete um medo danado só de olharmos para seu rosto: Mrs. Danvers. Ela é a chefona dos criados, ex governanta da falecida esposa De Winter, Rebecca. Mrs. Danvers é a prova viva de que nossa protagonista inomeável não deveria estar ali. Ela a analisa de cima abaixo, enquanto Fontaine está toda molhada de chuva, com roupas que pareciam trapos comparadas ás da falecida Rebecca.
A hostilidade de Mrs.Danvers em relação à nova senhora De Winter vai crescendo como um balão em que colocamos ar demais. E o que acontece com um balão com excesso de ar? Ele estoura. O estouro acontece na cena antológica do baile. Nossa protagonista tem a genial ideia de promover um baile à fantasia em Manderley, como os dados pela falecida esposa. Assim, ela decide desenhar sua fantasia. Mrs. Danvers, essa discípula fiel de Paola Bracho, sugere que ela copie a fantasia de um dos quadros da família. Vocês podem imaginar no que vai dar. Quer dizer, nós podemos imaginar o que vai dar, uma vez que toda vez que nossa protagonista tenta fazer com que algo funcione, ela falha bonito. A cena da festa é a prova máxima de que ela falhou. E que o sentimento da personagem de que ela falha em tudo, desde que nasceu, ultrapassa a tela. Começamos a experimentar a mesma angústia dela.
Antes de mudar o assunto, é indispensável falar sobre um diálogo entre Mrs. Danvers e nossa protagonista. De Winter instala a esposa na ala leste, e ela naturalmente fica curiosa para saber o que havia na outra ala, no outro lado da casa. Vai até lá e descobre que o quarto da falecida ficava lá. Ela começa a tocar nas coisas, tentar interpretar essa atmosfera, esse amor que todos sentiam por essa mulher que morreu mas ainda está ali de alguma forma. Mrs. Danvers acaba entrando no quarto e praticando a pior das torturas com a personagem. Sua tortura psicológica consiste em começar a mostrar-lhe o quarto da falecida, descrevendo seus hábitos cotidianos. Mrs. Danvers parece entrar em transe. Ele atinge seu auge quando ela finge pentear os cabelos de Rebecca. No entanto, quem está ali é a nova sra De Winter. Durante esse diálogo, tanto no livro como no filme, um possível sentimento de amor da empregada pela ex-patroa nos faz ficar com a pulga atrás da orelha. Particularmente fica bastante evidente a paixão de Danvers por Rebecca. A cena termina com Fontaine pregada na porta, prestes a ter um ataque de nervos.
O corpo de Rebecca reaparece. Então quem é a outra mulher enterrada no mausoléu da família? Como e por que o corpo está dentro da cabine de seu barco? Mas ela não era uma exímia comandante? Como ela se afogou? Ela se afogou mesmo? Ou foi assassinato? Essas perguntas nos prendem na cadeira durante duas horas, esperando ansiosamente por resposta. E talvez esse seja o maior dos triunfos do filme: promover essa angústia tão forte no livro de Du Maurier. Lembro de estar lendo e não conseguir mais parar, você fica curioso demais para parar no próximo capítulo. Com o filme é a mesma coisa. Os fãs de Hitchcock, acostumados com seu humor negro, estranharão a falta dele em Rebecca. Na verdade, acho bastante inapropriado, tendo em vista a atmosfera gótica e tensa que domina a história, o espaço para o humor. Os personagens são sérios demais. Uma pinta de humor fica por conta de George Sanders, que interpreta o primo de Rebecca, Jack Favell.A fidelidade do filme ao romance chama a atenção. Não sou do grupo que massacra adaptações, pelo contrário, acho que cinema e literatura funcionam de formas diferentes. Só que dessa vez, houve um excesso de fidelidade muito grande, digo, se você ler o livro, Manderley, De Winter, a protagonista… chegam muito perto daquilo que você imagina. E devemos isso a David Selznick, que produziu o filme. Quando recebeu o primeiro tratamento do roteiro, ele teria dito: Nós compramos Rebecca e é isso que iremos fazer. Selznick angariou mais um sucesso para seu currículo, pois Rebecca teve 11 indicações, incluindo melhor diretor, melhor ator, melhor atriz e melhor atriz coadjuvante. Venceu na categoria de melhor filme. Bom ressaltar que o ano de 1940 foi um ano difícil para os inimigos. Isso porque filmes como A carta e Tudo isso é o céu também concorriam ao Oscar de melhor filme. Para colocar mais lenha na fogueira, Correspondente estrangeiro, outro filme de Hitch mas da fase inglesa, concorria igualmente a essa categoria!! Como a zoeira não tem limites, nos bastidores de Rebecca, barracos aconteciam. Já disse lá no começo do post que um milhão de atrizes fizeram testes para o papel principal, entre elas Vivien Leigh. Pois bem, Leigh estava com Olivier naquela época (um dos casos de amor mais belos de Hollywood) e queria, naturalmente, que ela ganhasse o papel. Porém, Selznick escolheu a iniciante Joan Fontaine. Claro que Olivier não gostou, por isso, começou a tratar Fontaine mal. Hitchcock, que não era bobo nem nada e percebendo o comportamento de Olivier, pediu aos outros membros que também a tratassem com hostilidade, pois isso ajudaria na atmosfera do filme. Resultado: o clima de tensão constante que vemos no filme.
Em 1978, uma novela chamada A sucessora começou a ser exibida na Globo. Eis a sinopse, retirada da Wikipédia:
Os recém-casados Roberto e Marina Stein enfrentam dificuldades em sua relação por conta da memória da ex-mulher de Roberto, Alice Stein. Cultuada num retrato, mesmo depois de morta, Alice exerce um fascínio todo especial em todos com quem conviveu, principalmente na governanta Juliana, absolutamente fiel à antiga patroa e apaixonada pelo patrão. Vendo em Marina uma intrusa que está ocupando um lugar que não lhe pertence, Juliana mantém na mansão um clima de mistério e cria intrigas para separar o casal, chegando a levantar uma suspeita quanto a um relacionamento de Marina com Lopes, ex-capataz da fazenda onde a moça vivia.
Não, você não está ficando louco: é igual à sinopse de Rebecca. A novela foi baseada no romance homônimo de Carolina Nabuco, que jura de pés juntos que foi plagiada por Du Maurier. Isso porque Nabuco teria enviado o livro para ser publicado em inglês para os EUA, mas acabou que Du Maurier plageou. Para encerrar o post, abaixo um trecho da famosa novela, com nada mais nada menos do que Nathalia Thimberg no papel da Mrs.Danvers brasileira:
Publicado por Jessica Bandeira.
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