Image Map

sábado, 5 de abril de 2014

A roda da fortuna (1953)

The world is a stage
The stage is a world of entertainement!



Poucos diretores souberam se valer da metalinguagem, ou seja, falar sobre o cinema dentro de um filme, tão bem quanto Vincente Minnelli. Assim estava escrito (The bad and the beautiful) é um ótimo exemplo da fusão entre as fronteiras que separam a arte da vida real. Será que a vida imita a arte? Ou a arte imita a vida? Questões duras que o seu Aristóteles tentou responder. O fato é que Minnelli se vale da metalinguagem, dessa vez, para falar do mundo do teatro em A roda da fortuna (The bandwagon).

The bandwagon está repleto de referências ao mundo do cinema e da arte. O filme começa com as luvas e a famosa cartola, marcas do nosso ator principal, Fred Astaire. O picolino (Top Hat) também se vale da cartola+luvas, e só podemos concluir que Minnelli exalta a figura lendária desse dançarino maravilhoso que foi Fred Astaire desde o começo do filme. Além disso, em outros momentos também podemos perceber essa fusão entre mundo real e arte, algo que falarei em seguida. Antes talvez seja digno relatar um pouco a sinopse de The bandwagon – atentem para o fato de que sou péssima em fornecê-las –: Tony Hunter (Fred Astaire) é um dançarino-cantor que não está mais com essa bola toda, mas que é ajudado por seus amigos a se reerguer. Aqui já temos outro momento de metalinguagem, pois coincidentemente (ou não), Astaire passava por esse mesmo momento em sua vida pessoal. Quando começou a trabalhar em The bandwagon, Fred estava saindo de um fracasso, Ver, gostar e amar (The belle of New York). Minnelli aproveitou essa coincidência nos presenteando com uma cena engraçadíssima, logo que o filme começa. Nela, dois homens estão conversando sobre Tony, dizendo que outrora ele tinha sido um grande ator, mas que agora era um veneno de bilheteria. O homem com o jornal na frente do rosto, que está próximo dos personagens sem participar da conversa, resolve se manifestar. Ei, é o próprio Tony Martin! Ele mesmo concorda com tudo que os dois homens falam, realmente, ele era um veneno para as bilheterias. Assim como Fred, outros atores sofreram com a maldosa designação, entre eles Joan Crawford e Greta Garbo.

O fato é que Tony vive em um passado glorioso, alheio às mudanças que o show business sofreu desde os idos anos 30. Tive a impressão de que isso talvez se relacione muito ao próprio Fred, oriundo dos primeiros musicais do cinema. Talvez fosse difícil para ele se encaixar ao novo modelo de musicais, tanto na dança como na trama. Fred/Tony se sente um dinossauro perante tantas mudanças, e Minnelli irá explorar com maestria esse sentimento ao longo do filme. Para coroar o fracasso de Tony, quando ele desce do trem, uma multidão está dando chiliques com “uma atriz de cinema” que estava chegando no mesmo trem que o personagem. Nada mais nada menos do que Ava Gardner, interpretando a si mesma. O chefão do estúdio, Dore Schary, queria que Esther Williams fizesse essa pequena participação, porém Ava foi quem acabou fazendo a cena. Trazer artistas para interpretarem a si mesmos é uma tendência em musicais, se pensarmos na participação especial de Joan Crawford em Paris em abril (Paris in april), musical estrelando Doris Day. O perdedor Tony sai caminhando pela estação e é nesta cena que temos o primeiro número musical de Fred, By myself. Depois daquela cantoria toda, ele encontra seus amigos de longa data, o casal Lester e Lily Morton (Oscar Levant e Nanette Fabray), que o recebem com placas dizendo “Fã clube de Tony Hunter!”. Esse Minnelli não se cansa de misturar vida real e cinema! Isso porque o casal Morton foi inspirado em Adolph Green e Betty Comden, dois compositores que escreviam roteiros e músicas para diversos espetáculos da Broadway. Além disso, o episódio das placas foi inspirado em um evento real. Conta-se que Adolph Green, após um fracasso na Broadway, foi recebido na estação por sua colaboradora, Betty, com uma placa dizendo “Fã clube de Adolph Green”. Voltando ao filme, o casal Morton anuncia que está trabalhando em um espetáculo perfeito e que querem Tony como protagonista. Eles têm até o nome do diretor, Jeffrey Cordova (Jack Buchanan). Só que Jeff, que adora os clássicos, acaba transformando o projeto do casal em uma versão moderna de Fausto.

Número musical A shine on your shoes
É interessante notar a relação do título com a história. Bandwagon, segundo o Urban Dictionary, é alguém que acaba seguindo o que o grupo diz. Um Maria vai com as outras? Talvez.  E é exatamente o que irá acontecer com Tony. A princípio, ele reluta, não quer participar do musical. O sentimento de pertencer a era jurassica dos musicais, trabalhar com a bailarina Gabrielle Gérard (Cyd Charisse) acabam criando entraves para seu aceite. No entanto, ele acaba aceitando, sendo um quase Maria vai com as outras. Aliás, o auge do sentimento de dinossauro acontece quando Tony está passeando pela Rua 42, a famosa rua do entrenimento que virou até nome de filme, e percebendo como as coisas mudaram. O que dá margem para um dos melhores números do filme, A shine on your shoes, em que o personagem dança com um sapateiro. 

Minnelli coloca duas forças antagônicas no filme, representadas por Gabrielle Gérard e Tony Hunter. Gérard é uma bailarina clássica enquanto Hunter é um cara do sapateado. Como duas coisas tão diferentes poderiam se fundir? A resposta: Gene Kelly. Gene foi o cara que idealizou a mistura entre balé clássico e sapateado, o que podemos ver claramente em seu número com Charisse em Cantando na Chuva.  Contudo, no filme, vemos Hunter tentando se integrar ao balé clássico sem sucesso. Em uma de suas melhores falas, ele diz: “Eu não sou Ninjinsky, não sou Marlon Brando. Sou um cara que dança e canta”. Para nossa alegria, depois de alguns perrengues, o balé clássico e o sapateado se fundem em números inesquecíveis como Dancing in the dark. Fred e Cyd nos presenteiam com uma das danças mais bonitas do cinema, eu arrisco dizer. Nele, podemos ver todo o talento de Charisse nos passos clássicos, aliados ao grande sapateador que foi Fred.

Cyd e Fred sambando na cara da sociedade no número Dancing in the dark.


Você é do tipo que implica com números musicais? Que acha tudo muito forçado? Os personagens começam a cantar e dançar do nada? Eu desafio você a assistir três números de The bandwagon e me dizer que não tem nada de mais. Escolhi apenas três porque, vocês sabem, musicais tem uma porrada de números e nós poderíamos falar deles o dia inteiro. O primeiro se chama Triplets (Tri-Gêmeos) e é cantado por Fred, Nanette e Jack. Só a imagem desses três vestidos de crianças, parecendo terem a minha altura (Brincadeira! Mas eles realmente parecem muito pequenos, mesmo) já arranca risadas. Para falar a verdade, não sabemos direito o que esse número tem a ver com a história montada pelo casal Marton. Não importa. O que faz esse número imperdível é a sintonia do trio, além da letra cheia de trava-línguas. Não consegui cantar nem uma estrofezinha! O segundo é That’s entertainement, cantada de novo pelo trio Fred-Nanette-Jack. Creio que essa música poderia ser o hino dos musicais. O mundo é um palco, o palco é um mundo de entretenimento, diz a música. Essa canção dá nome ao documentário dividido em três partes sobre a era de ouro dos musicais, inclusive recomendo-o fortemente. Como não se encantar com esse trio? O último e melhor número fica pela homenagem de Minnelli aos filmes noir, The girl hunt ballet. Se você não tiver paciência de assistir aos outros, por favor, veja este. Vale os 12 minutos de duração. Trata-se da história de um detetive, que acaba se metendo com uma gangue. É um deleite aos olhos. Minnelli trabalha muito bem com o conceito do filme noir neste número. Os cenários escuros, os prédios enormes que diminuem o detetive, a mulher fatal... está tudo em The girl hunt ballet. Aqui também podemos atestar como o balé clássico se funde com o sapateado, enchendo a tela de significados. Charisse interpreta dois papeis: o da femme fatale e o da moça ingênua que se apaixona pelo detetive. Se observarmos bem, veremos que a dança marca essa diferença entre as duas mulheres. A loira boazinha dança de uma forma mais suave, tendendo para o balé clássico. Mas quando a morena fatal chega a tela é tomada pelos quadris sensuais de Cyd mexendo para lá e para cá. Como o próprio detetive diz: “ela estava tentando vender, mas eu não estava querendo comprar”. A narração do detetive em off e o jazz aumentam ainda mais o clima noir da cena. Em outras palavras: imperdível!



Parece incrível como Minnelli pode trabalhar tão bem em um plot tão batido como o do gênero musical, deixando com a qualidade que marca seus trabalhos. As gags, os números musicais, as referências ao mundo do cinema e da arte, o carisma dos personagens... Tudo trabalha a favor de The bandwagon. Considerado um dos últimos musicais da era de ouro de Hollywood, ele não perde nada para seus contemporâneos como Cantando na Chuva ou Sinfonia em Paris, este último dirigido por Minnelli. Ele consegue cumprir a premissa de sua música carro-chefe, That’s entertainement: divertir. E claro nos fazer suspirar a cada vez que as danças de Cyd e Fred invadem a tela.


Publicado por Jessica Bandeira.

Nenhum comentário:

Postar um comentário