Uma ode ao cinema
clássico e suas divas. Crise de identidade. Crítica ferrenha ao cinema
americano dos anos 70. William Holden. Com essa mistura mais atraente que o
bolo de chocolate da minha avó, Billy Wilder despediu-se do cinema. Estamos
falando de seu último filme, Fedora.
Quando Billy Wilder
chutou o pau da barraca no ano de 1951 e denunciou através de seu filme, Crepúsculo dos deuses, toda a trairagem de Hollywood, ninguém fazia
ideia de que esse filme se tornaria um tour
de force do cinema, um clássico do gênero noir. Mas ao contrário do que aconteceu com muitos diretores, Billy
não ficou preso a um único gênero de filme. Dirigiu o Cidadão Kane dos filmes noir,
Pacto de sangue. Fez comédias como Quanto mais quente melhor e Se meu apartamento falasse, que entraram
para o must see dos cinéfilos de
ontem, hoje e sempre. Também tivemos suas parceiras com Marlene Dietrich em Testemunha de acusação e A mundana. Porém, como um filho pródigo
sempre volta sua casa, Billy escolheu voltar para aquilo que, na minha opinião,
ele sabia fazer melhor: sambar na cara de Hollywood. Fedora é um Crepúsculo dos
Deuses reinventado, com um toque de absurdo.
As
semelhanças com Crepúsculo dos deuses
Nosso filme começa em media res, com a morte da personagem Fedora, uma atriz da era de ouro de
Hollywood. Enquanto seu corpo está sendo velado, a voz de Barry Detweiller
(William Wolden) começa a nos dar as primeiras pistas daquela situação. Quem
não lembra de Joe Gillis, morto na piscina da casa da estrela do cinema mudo
Norma Desmond, nos contando que finalmente ele teria uma piscina? Assim como Crepúsculo, Fedora já nos dá o final, MAS não a causa. De que ela morreu? Por
que morreu? Um recurso muito inteligente na minha opinião.
Detweiller e Fedora . |
O filme se propõe a
contar as duas últimas semanas de Fedora,
que vive reclusa na ilha grega de Corfu através da narração de Detweiller, um
famoso produtor de filmes. Ele quer que a personagem estrele sua nova produção,
Anna Karenina. No entanto, ela vive
nessa ilha junto à Condessa Sobryanski (Hildegard Knef) e não recebe visitas.
Não quer mais saber de cinema. O próprio personagem Barry ser interpretado por
William Holden já é um indício dessa aproximação que Billy realiza com seu
filme de 1951. Aqui também temos uma figura interesseira, assim como Joe Gillis
o era. É claro que o prestígio os separa: Joe era um pé de chinelo; Barry tem
dinheiro. O fato é que Barry começa a rondar a villa onde a atriz vive, desesperado por um contato. Ele acaba
conseguindo falar com ela, que lhe diz que não pode sair. Que ninguém a deixa
fazer nada.
Norma Desmond em Crepúsculo dos deuses. |
Outra semelhança com Crepúsculo diz respeito à personagem
principal. Fedora não é só Norma Desmond; poderia ser Marlene Dietrich, Joan
Crawford, Greta Garbo... Fedora representa todo esse glamour que já tinha
virado piada em 1978, ano em que Wilder lançou seu último filme. Para mim, o
diretor realiza uma homenagem a essas atrizes, tanto as que trabalharam com ele
como as que não trabalharam, lhes dá um pouco de dignidade. Dignidade essa que,
em sua visão, foi retirada com a evolução do cinema. Falaremos sobre isso mais
para frente. Há uma frase que nos marca bastante e ela acontece em um diálogo
entre o médico de Fedora, Fernando (José Ferrer) e Dutch – apelido de Barry.
Nele, Fernando diz que não sobraram estrelas, que elas estão mortas. O primeiro
diálogo entre Norma (Gloria Swanson) e Joe em Crepúsculo dos deuses também tem esse tom pessimista. Eles estão mortos, acabados! Já se foi a
época em que os olhos do mundo inteiro estavam voltados para eles, diz
Desmond destilando rancor em relação ao cinema falado e a destruição de todo um
modo de se ver e fazer cinema. Novamente o cinema era “destruído”, dessa vez
com os filmes sem pé nem cabeça dos
anos 60 e 70, que tocavam o terror na Hollywood dos grandes magnatas
conservadores.
Billy
Wilder: especialista em sambar na cara de Hollywood
Em Crepúsculo dos deuses, o mundo glamoroso de Hollywood cai por terra
diante de nossos olhos. Na verdade, esse lugar não passava de um jogo de
interesses, onde atrizes que não serviam mais eram jogadas fora (vide Norma
Desmond), descartadas como lixo. Além disso, também se discute a questão do
cinema mudo X cinema falado. Norma representa o velho, aquilo que já passou, um
cinema artificial, que ninguém se lembra mais. Aí eles abriram a boca e nunca mais pararam de falar! – ela diz. A
praga era o cinema falado e a forma como Hollywood tratava suas estrelas. Sunset Boulevard foi mal recebido na
época, talvez fosse um filme pessimista demais para uma Hollywood que acabava
de sair da guerra e que queria alegria. Pessimista ou não, era o que acontecia.
Já em Fedora, a dinâmica é um pouco diferente,
mas a crítica continua ali, latente. O que é criticado é essa segunda onda de
mudanças do cinema, que precedeu a da era falada. Os anos 60 vieram e o que
rolou foi basicamente um joga fora no
lixo em relação ao cinema. Os novos diretores queriam negar todo o
“passado” cinematográfico, pois o consideravam artificial. Nada dessas mulheres
com cinco litros de massa corrida na cara. Nós queremos as mulheres comuns.
Queremos retratar a vida como ela é,
então adeus às filmagens em estúdio. É bastante contraditório, pois foram esses
caras que salvaram Hollywood da crise. Os grandões dos estúdios tiveram que
dançar conforme a música psicodélica da época.
As
coisas são diferentes. Quem comanda o negócio são os jovens barbudos com uma
câmera na mão.
Nessa fala de Barry
temos a consolidação dessa crítica que Billy faz ao novo cinema. Não havia mais
espaço para as Fedoras. Ou elas se adaptavam, como Bette Davis e Joan Crawford
que se tornaram musas dos filmes de horror dos anos 60 ou caíam no ostracismo.
A televisão também era uma alternativa. Também existe uma crítica indireta ao
fato de que os estúdios não estavam mais por trás de suas estrelas. Quer dizer,
elas não tinham mais proteção, se acontecesse algum tipo de escândalo (Lana
Turner era rainha em ter a carreira salva dos escândalos pelos estúdios da
MGM), não tinham garantias financeiras. Agora era cada um por si e Deus contra todos.
Forjando
uma estrela
Nós sabemos desde o
começo que o destino da personagem principal é a morte. O problema é que não
contávamos com o fato de que ela morre aos 51 minutos de filme, muito antes de
ele terminar. O espectador se pergunta: tá, e agora? É só isso que aconteceu a
ela? Não, não é. O que na verdade é O
acontecimento é que a moça no caixão não é a verdadeira Fedora. Juro que dei
um grito quando isso foi revelado. Essa é a grande virada do filme e que
nos insere na segunda e última parte do filme.
Fedora, como toda
estrela, percebeu que estava ficando velha e não gostou nada disso. Começou a
lutar contra o tempo, submetendo-se a diversos procedimentos estéticos. Quem
lembra de Gloria Swanson suando e sofrendo para ficar bonita para estrelar o
filme de DeMille em Crepúsculo dos deuses?
Só que em um desses procedimentos algo deu errado. Seu médico injetou uma
substância que causou uma reação na pele da atriz, deixando-a queimada e com
paralisia nas pernas. Foi o fim. A atriz havia arruinado seu instrumento de
trabalho, e agora não restava nada a não ser isolar-se do mundo para ninguém
saber. Assim, ela vai para a ilha de Corfu. Sua filha com o Conde Sobryanski,
que teve uma mãe ausente devido ao seu status
de estrela, acaba indo viver com a mãe na ilha. Um dia, uma ligação muda a vida
delas. É Academia anunciando que resolveu dar um prêmio pela obra de Fedora. Há
um tom de crítica nessa parte também, basta lembrar como milhares de estrelas
foram injustiçadas e não tiveram seu trabalho reconhecido. Esse prêmio da Academia
representa uma compensação do tipo: Nunca
demos o Oscar para você, contente-se com um prêmio pela obra.
Desmond suando a camisa para se preparar para o filme de DeMille. |
Ela não pode aceitar o
prêmio do jeito que está. E aí vem a ideia: caracterizar sua filha como Fedora
e fazê-la receber o prêmio como se fosse a própria mãe. Isso só é possível por
causa da semelhança assustadora entre mãe e filha. Dessa forma, é Antonia
(Marthe Keller) que recebe o prêmio das mãos de Henry Fonda, o presidente da
Academia. Mas as coisas não param por aí e Antonia acaba assumindo a identidade
da mãe.
A falsa Fedora recebendo o prêmio das mãos de Henry Fonda. |
Esse roubo de
identidade causa sérios danos a vida de Antonia, que em um primeiro momento sente-se
orgulhosa em estar desempenhando aquele papel. No entanto, logo que se apaixona
por Michael York – interpretando a si mesmo no filme –, ela percebe que não
pode revelar quem é. Tudo para manter o papel. Ela começa a ficar perturbada e
em uma das cenas mais tocantes do filme, Antonia está escrevendo seu nome
repetidas vezes no vidro embaçado da janela. Isso me lembrou bastante A pele que habito, um dos últimos filmes
de Almodóvar, onde a personagem também tem sua identidade roubada e escreve nas
paredes para não ficar louca.
Ao sugerir que a verdadeira
Fedora, que se passava pela Condessa Sobryanski, revelasse a verdade ao mundo,
Dutch recebe a seguinte resposta: a lenda deve continuar. O próprio enterro da
falsa Fedora é um espetáculo, realizado com a maior mácula para manter a imagem
de estrela. Era isso que importava na Hollywood dos anos de ouro: manter a
imagem. Não é à toa que escândalos eram abafados e nem que o estúdio também era
responsável por criar essas imagens. Marilyn Monroe, por exemplo, jamais
conseguiu livrar-se do estereótipo de “loira burra e sensual”. Joan Crawford
prezava por sua imagem diante do público. Depois de sua morte, sua filha
Christina tentou destruí-la com o livro Mamãezinha
Querida, mas o feitiço virou contra o feiticeiro e a lenda ao redor de
Crawford aumentou.
Eu
dei a chance de ela ser Fedora e ela não soube aproveitá-la,
diz a verdadeira atriz.
É dessa forma linda e crítica que Billy Wilder encerra sua carreira no cinema. Quando o filme termina, você fica com a sensação de que sentiu algo muito forte e não consegue explicar o quê. Acho que esse é o efeito Billy Wilder em nós.
Publicado por Jessica Bandeira
É, envelhecer, sobretudo em Hollywood, não é para os fracos, já dizia Tia Bette. Outras que sofreram com isso, e consequentemente foram para o limbo: Ava, Lana e Rita Hayworth. A Bette, a Joan e a Kate Hepburn tiveram sorte em comparação. Sorte não. Talento e malemolência, haha. Outra coisa: sorte nossa que o Billy Wilder amava o Bill Holden. Os dois juntos eram que nem queijo e goiabada. Um outro que amo dos dois é Inferno nº 17, é ótimo, e o Holden ganhou o Oscar por ele.
ResponderExcluirE por fim, eu amo essa versatilidade do Billy e essa capacidade de sambar na cara de Hollywood. O homem manjava muito desses cambalachos. Um filme dele dos anos 70 que gostei muito foi "A vida íntima de Sherlock Holmes", que inspirou o seriado que passa atualmente na BBC (de dois em dois anos, tem três episódios, rs), "Sherlock".
Parabéns pelo post, Jessie :) amei!
(Camila)