O cinema é o espelho da sociedade. Os valores
pregados por ela estão em cada filme que assistimos, diretamente ou não. Talvez
a percepção disso tenha me estragado como cinéfila. Não há filme que espelhe
mais a sociedade dos anos 50 do que Sob o
signo do sexo. Mas não se engane, pois você vai encontrar muitos ecos do
que este filme preconiza nos dias de hoje. E é por isso que o escolhi, numa
tentativa de mostrar que ainda pensamos como a sociedade dos anos 50 sob muitos
aspectos. Sim, lá vem um post feminista.
The best of everything (Sob o signo do sexo nessas bandas) foi um dos filmes bafônicos do
final dos anos 50. Depois de A caldeira
do diabo, ninguém achava que poderia vir algo mais polêmico. Porém, a
Twentieth Century Fox (mais precisamente o produtor Jerry Wald) provou que um
personagem que era filho de um incesto não era NADA perto do rebuliço de The best of everything causou. O filme
utilizava uma fórmula bem conhecida em Hollywood: três-amigas-na-cidade. Como a
fórmula já era bastante batida (Joan Crawford, que participou de The best protagonizou dois dos grandes
filmes conhecidos desse gênero em 1920 e lá vai cacetada) , algo precisava ser
incrementado a ela. Então uma pitada de “realismo” foi aplicada ao filme. E que
realismo seria esse? O realismo de que
estamos falando é o aborto, as relações extraconjugais, o sexismo, as mulheres
no mercado de trabalho. Você pode me perguntar: mas isso já não existia? Já,
mas não era abortado de forma tão explícita em um filme até então. O escritório
de censura de Hollywood deixava passar esses assuntos, desde que fossem
tratados de forma sutil. Em the The best
of everything está tudo escancarado, tudo que Jerry Wald queria para
garantir grandes bilheterias.
Falar sobre The
best of everything sem falar sobre Jerry Wald seria heresia. Este simpático
homem foi um dos produtores mais famosos de Hollywood, conhecido por seu
trabalho com Joan Crawford na sua fase Warner Brothers (Almas em suplício e Acordes
do coração). Reza a lenda que ele guardava pastas e pastas com recortes de
jornais e afins, tudo que poderia ser tornar uma história futuramente. Mas como
Wald chegou até The best? Assim que
conheceu Rona Jaffe, a autora do romance que futuramente daria origem ao filme.
Wald era conhecido por respeitar muito escritores, tinha Faulkner como amigo
íntimo entre outras celebridades do mundo literário. Ele estava à procura de um
novo Kitty Foyle, um filme em que as
mulheres pudessem ter uma identificação imediata. Jaffe, que trabalhava em um
escritório, disse a Jerry que escreveria uma história sobre suas colegas de
trabalho. Porque, como ela mesma diz, conhecia essas mulheres. Assim, nasceu The best of everything, o primeiro livro
comprado antes de ser publicado para ser filmado pela Fox. É claro que Jerry
fiscalizava tudo, além de fazer publicidade falsa para o filme. Espalhou para a
imprensa que Paul Newman iria protagonizá-lo. Tudo isso fez com que o livro
ficasse durante semana na lista de bestsellers
e com que o filme fosse ainda mais aguardado.
Já pela orelha do livro podemos ter noção do
que vinha por aí: “Aqui estão as moças que não se casaram aos vinte. (...) São
as garotas de hoje, que são atraídas por Nova York para fingir que têm uma carreira enquanto esperam por aquilo que
realmente desejam: um marido e um lar”.
Esse também é o mote do filme. E aí está a pegadinha de intitulá-lo de moderno;
ele só reafirmava que a independência e carreira de uma mulher não eram nada sem o amor de um homem. Que não
adiantava ter essas coisas, você ia sentir falta de algo, neste caso um lar e
um marido. Muito parecido com mensagem das comédias protagonizadas por Doris
Day. As cinco protagonistas – no fim das contas apenas três delas aparecem mais
– são julgadas conforme os padrões de uma sociedade que divide as mulheres
entre as que são “respeitáveis” e aquelas que “servem apenas para a diversão”.
O tempo inteiro. Em The best of
everything, temos estereótipos para dar e vender dessas mulheres:
- Caroline
Bender (Hope Lange): A mocinha, que depois de abandonada pelo noivo,
mergulha no trabalho disposta a subir na carreira.
- Gregg
Adams (Suzy Parker): Aspirante à atriz, que tem um relacionamento doentio
com seu diretor de teatro. Do tipo frívola, sensual, desmiolada, mas muito
querida. Hollywood adora esse tipo, vide personagens de Marilyn Monroe.
- April
Morisson (Diane Baker): A mocinha ingênua do interior, que será usada e
jogada fora por seu namorado, Dexter.
Caroline é a nova secretária da editora, que
começa o filme afirmando com a maior convicção do mundo que seu único desejo é
ser esposa e ter filhos. Ó, que mulher, essa é pra casar. Contudo, seu noivo a
troca por outra durante uma viagem e as ilusões da personagem terminam. Para
escapar da desilusão, ela mergulha fundo no seu próximo objetivo: se tornar uma
editora tão influente quanto sua patroa, Amanda Farrow (Joan Crawford). É
interessante notar como Amanda serve como um espelho para Caroline. A editora bãn bãn tem um caso com um homem casado,
um dos donos da editora, que lhe enrola eternamente quando o assunto é
casamento. Apesar de todo aquele poder, Amanda é frágil, e como toda mulher precisa de amor. Assim, ao receber a
proposta de casamento de um velho amigo, ela decide sair da empresa e ir em
direção ao amor. Porém, para nossa surpresa, a empreitada dá errado. Fiquei
pensando nisso depois que vi o filme e cheguei a conclusão de que a volta de
Amanda é uma forma de dizer a Caroline que, se ela demorar muito e ficar velha
como Amanda, não vai mais dar certo. Basicamente não deu certo com ela porque a
personagem é velha. Então Amanda
decide ficar com sua carreira, afinal é a única coisa que deu certo em sua
vida. Coitada, não tem o amor de um homem e um lar, veja bem.
Caroline Bender (Hope Lange). |
Gregg Adams (Suzy Parker). |
Já Gregg Adams é o oposto de Caroline: efusiva,
consciente de seu poder feminino, uma vamp.
E é claro que ela paga caro por isso no final do filme. Gregg acaba se
envolvendo com seu diretor de teatro, David Savage (Louis Jourdan). Amanda lhe
diz que ela deve correr que esse homem é cilada. Só que Gregg acaba se
encantando com a ideia de ser sua nova estrela e com suas palavras também. Logo
a relação começa a ficar tensa, pois ela não aceita ser trocada por outra e
começa a controlar sua vida. Aliás, a atuação de Suzy Parker, que era modelo, é
sensacional. Os produtores tinham medo de que ela não conseguisse dar conta da
fase negra de sua personagem, o que felizmente não aconteceu. Gregg começa a
vigiá-lo, remexer em seu lixo. Sua vida termina tragicamente quando ela sem
querer cai da janela, em uma dessas vigias. Muito convencional, já que o filme
não poderia sugerir que fora suicídio. Em muitos momentos tive a sensação de
que havia uma tentativa de suavizar a culpa no cartório de David. Ele poderia
ter várias mulheres, afinal era o que se espera de um homem. Gregg, coitadinha,
não soube lidar com isso. Ela deveria conhecer mais o mundo, aí não terminaria
como terminou. O filme parece querer passar essa mensagem de que isso “faz
parte da natureza masculina”, você tem que saber lidar se quiser sobreviver.
Vergonhoso.
Por último, temos a personagem mais
interessante do filme, April. Essa paga por ser ingênua. Repararam como TODAS
personagens femininas nesse filme pagam por algo? Paga por ser ingênua, por ser
ambiciosa, por amar demais, por ser velha. E sob esse aspecto nada mudou. Nós,
mulheres, pagamos por tudo. Pagamos por existir.
Não é surpreendente que um filme de 1959 seja tão próximo de nós, em 2014,
neste aspecto? Ainda não paramos de policiar as mulheres e fazê-las pagar por
absolutamente tudo que façam. Mas voltando à April. Ela veio de Connecticut,
interior dos EUA, para ser secretária em N.Y. Lá pelas tantas, ela conhece
Dexter Key (Robert Evans). Eles começam a sair e, conforme o protocolo, chega
um momento em que a atração sexual entre eles é inevitável. April não quer
transar com o moço, só depois de casar. Representando muito bem a moça decente,
essa é pra casar feelings. Só que Dex
acaba a convencendo, e eles transam. Aí vocês imaginam o que acontece. O cara
só queria uma transa, dá o fora, quebrando o coração de April. Para a desgraça
ser completa, ela fica grávida. Ele a leva para se casar, só que na verdade
está levando-a para abortar em uma clínica. Aliás, a palavra “abortar” não é
dita nenhuma vez, sendo subtituída por “operação”. Imaginem o choque das
pessoas assistindo isso no cinema em 1959. Em outra operação, a do bate e
assopra, April acaba perdendo a criança espontaneamente após o carro fazer uma
curva brusca e jogá-la para fora. Vamos mostrar o aborto, ok, as pessoas já
estão bem chocadas. Para não chocar mais vamos fazê-la perder sem ir à clínica.
Hoje o mito de que a mulher deve reservar seu corpo ao cara que é decente e
quer algo sério com ela continua. Muitas mulheres são criadas para serem April
Morisson. Quando acontece uma situação parecida, elas se sentem culpadas. Como
se tivessem sido usadas. Parece que o corpo de uma mulher sempre está sendo
vigiado; ela não pode fazer o que bem entender com ele. Depois de realizar o
aborto, ela coloca as mãos no rosto e diz: “Estou tão envergonhada! Agora não
passo de uma mulher que teve um caso”. Mais uma vez, senhores, a eterna divisão
entre mulheres respeitáveis e que tiveram um caso. Por que enxergar isso em
2014 não me surpreende mais?
Não falar sobre o personagem Fred Shalimar
(Brian Aherne) seria uma heresia. Ele é um dos grandes da editora, talvez o
personagem masculino que mereça maior destaque. E não é porque ele faz coisas
boas no filme, não. Na verdade, Shalimar é um representante do que há de mais
sexista dentro da sociedade. O que há de mais podre para ser mais específica.
Ele é o passado, presente e futuro. Por quê? Para começar, ele pratica assédio
sexual com suas funcionárias. Mas não é só isso. Ele não se contenta em
agredi-las verbalmente; ele também as apalpa descaradamente. Várias vezes.
Várias. E tudo bem. Está tudo bem. É normal. É a natureza masculina. Não é a
primeira vez que um homem aparece fazendo esse tipo de coisa, basta lembrar que
em 1933, no filme Grande Hotel, Joan
Crawford foi apalpada por John Barrymore. E todas essas cenas em tom de
brincadeira. Shalimar é um representante do macho alfa da nossa sociedade. Ele
é grandão, assedia as funcionárias, mostra sua virilidade. E para coroar tudo
isso, ainda há o diálogo entre ele e Amanda Farrow:
"É claro que continuo apalpando todas as garotas". "Você não achou que eu estava interessado na inteligência delas, né?" |
Pois é.
Mudando de saco para mala, ainda há um último
ponto a ser tratado se você ainda está aguentando ler esse post: Joan Crawford.
Você não achou que eu me esqueceria dela, não? The best of everthing foi o primeiro filme em que Miss Crawford
atuou como coadjuvante. Depois da morte de seu marido e presidente da Pepsi
Cola, Alfred Steele, a atriz estava bastante deprimida, o que motivou Jerry
Wald a chamá-la para o filme. O pessoal do filme sabia que se alguém dissesse
que esse era um papel menor, Joan jamais aceitaria. Por isso, Wald inventou uma
estratégia, escreveu uma cena fictícia para ela, que lembrava muito sua
personagem Helen Wright em Acordes do
coração. Crawford veio correndo. Segundo o livro Os bastidores de Hollywood na Vanity Fair, Joan estava bebendo cada
vez mais. Alguns relatam que ela chegara bêbada no set, e que um dia, ela teria
sido vista calçando sandálias diferentes; azul em um pé, branca no outro. No
fim das contas, Joan provou que não importasse se o papel menor; ela arrasava
do mesmo jeito. Amanda Farrow tem a língua afiada e rende os melhores diálogos
do filme. A tensão entre Hope Lange e Joan na vida real ajudou na realização
das cenas, pois as personagens das duas viviam em um eterno clima de ironia e
troca de farpas. Ná epoca, algumas pessoas se apavoraram como Crawford estava
“velha”. Na série de televisão, Mad Men,
existe um diálogo em que os personagens comentam que nào acreditavam que uma
musa do cinema estivesse tão velha. Joan pagando o preço de se arriscar no
cinema, pela segunda vez em cores. Acho que ninguém sofreu mais com esses
comentários do que a própria Joan. Se o mundo era um lugar cruel, Hollywood era
dez vezes pior.
Jaffe classifica seu livro como “um romance
sociológico”, simplesmente escrevendo sobre aquilo que acontecia na puritana sociedade
e ninguém tinha coragem de admitir. Apesar de sua coragem, não podemos esquecer
que Jaffe estava reproduzindo os valores do patriarcado, de que a mulher queria
amor, marido e filhos. Só isso. Carreira pra que então? Por isso, decidi
escrever sobre The best of everything.
É a forma que encontrei de mostrar que queremos muito mais que flores e
chocolates no dia oito de março. Queremos respeito. Não queremos ser assediadas
por nossos chefes, nem por ninguém. Queremos poder dizer a April que ela é muito
mais que uma mulher que teve um caso. Que ter casos não define caráter. Que não
sejamos reduzidas a ter um marido e um lar. Quem quiser ter que tenha. Mas quem
não quiser que seja respeitado por isso. Queremos ser, só isso.
Feliz dia internacional da mulher.
Publicado por Jessica Bandeira.
Querida, como já te disse, me arrepiei ao ler esse teu texto. Uma forma bastante original pra falar sobre o oito de março e o feminismo. Incrível que o filme/livro aborda exatamente TUDO o que ainda presenciamos hoje na sociedade patriarcal de 2014. Isso é um absurdo tão gigante que o ódio aumenta a cada dia que passamos no convívio desse machismo. Linda a tua análise, lindo teu texto e é adorável teu gosto pelo cinema! E sigamos na luta feminista!!
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