Em tempos de reavivamento da Marcha da Família
com Deus as portas do aniversário – afinal, o que temos para comemorar? – dos
50 anos da implementação do golpe civil-militar, é necessário que falemos à
exaustão sobre esse tema. Se as pessoas saem às ruas com cartazes com os
dizeres “intervenção militar já!”, é porque existe uma lacuna não preenchida na
formação delas. E essa lacuna diz respeito ao fato de silenciar, omitir ou
simplesmente ignorar tudo que aconteceu durante a ditadura militar. É acreditar
que vivíamos em um Brasil “melhor” naquela época, porque olha todas as obras
que o presidente Médici fez! Só que o ninguém sabe ou prefere ignorar é o
tremendo desvio de dinheiro que rolou nessa época para que o milagre brasileiro
pudesse acontecer. É acreditar que naquele tempo não havia violência como hoje.
E a censura, minha gente? A violência existia, mas como a imprensa estava
censurada, ninguém ia colocar no seu jornal esse tipo de notícia para depois
ter sua redação incendiada.
Sim, nós precisamos ainda falar muito sobre
isso. Muito mesmo. E, neste caso, acredito que o cinema cumpra um papel crucial
no que diz respeito à ditadura civil-militar brasileira. É preciso que existam
filmes que tratem dessa época, que discutam o que foi esse período e seu
impacto na vida dos brasileiros. Batismo
de Sangue, Que bom te ver viva (já
falei dele por aqui, você pode ler o post aqui: http://cine-espresso.blogspot.com.br/2013/08/que-bom-te-ver-viva-1989.html ) e Você pode dar um presunto legal são alguns desses filmes.
Recentemente também tivemos A memória que
me contam, da diretora Lúcia Murat, que dirigiu Que bom te ver viva. Esses filmes cumprem seu papel crítico de
retratar esse período, além de poderem registrar para as gerações futuras que
queiram conhecer mais sobre a história do seu país. O documentário Cidadão Boilesen também faz parte dessa
gama de filmes, porém ao contrário dos outros que citei, ele nos leva para um
lado pouco conhecido da ditadura: o apoio do empresariado paulista na luta
contra o terrorismo e a subversão. Não
é a toa que Cidadão levou 16 anos
para ser concluído, sem apoio de grandes produtoras. Ninguém apoiaria um
documentário que tocava numa ferida que muitos preferiam ignorar.
Em São Paulo, existe uma rua chamada Henning Albert
Boilesen. Algumas pessoas são paradas nessa rua e indagadas se conhecem o cara
que dá nome à ela. A maioria responde que não. Assim começa Cidadão Boilesen. A primeira vista,
parece uma maneira singela de começar um documentário. Mas não é. Na verdade, trata-se
de uma forma sutil de o diretor mostrar como ainda desconhecemos figuras
importantíssimas para o entendimento do que foi a ditadura civil-militar por
aqui. E como é conveniente que não saibamos quem foram, afinal... o que dizer
desse presidente da Ultragaz, ultra carismático, mas que assistia sessões de
tortura na OBAN? E que era amigo do Delegado Fleury, o homem por trás do
Esquadrão da Morte? É muito fácil silenciar. Mas já chegaremos na OBAN, Fleury
etc e tal.
Boilesen nasceu na Dinamarca e, após o
casamento com uma brasileira, veio para o Brasil com uma mão na frente e outra
atrás. Começou como contador na empresa de gás, a Ultragaz, e em menos de 10
anos já estava à frente da companhia como presidente. O documentário traz
diversos depoimentos de amigos de Boilesen, tanto dinamarqueses como
brasileiros. Ele é descrito como um homem carismático, que se adaptou muito bem
ao jeitinho brasileiro e que adorava esse país. Além disso, era socialmente
ativo, pois tinha um filho com deficiência visual, o que fez com que criasse
iniciativas que trabalhavam com os jovens. Em suma, um homem íntegro, quase um
César da antiga novela Amor à vida. Um
exemplo.
Só que como César, foi só uma questão de tempo
para que Boilesen revelasse seu outro lado. Um lado bastante obscuro. E ele
veio no rastro com o golpe civil-militar de 1964. Senta que lá vem história.
Jânio Quadros e sua vassoura: queria varrer a corrupção do país. Em outras palavras: ZUEIRA. |
Todos sabem a bagunça que o Brasil se
encontrava antes do golpe. Jânio Quadros, o presidente que proibira as brigas de galo, renunciou. João Goulart estava na
China, fazendo contato com aqueles comunistas
comedores de criancinhas. Goulart queria fazer suas reformas de base, frear
o lucro das empresas estrangeiras aqui, o que não agradou de forma alguma os
setores mais conservadores da sociedade. Do outro lado do mundo, os EUA estavam
de olho em tudo que acontecia aqui. Não podemos ter outra Cuba, socorro! –
teria dito o presidente Kennedy. A solução fora começar a apoiar um golpe para
salvar o Brasil dessa ameaça. Os EUA colocariam seus navios no Porto de Santos,
prontos para atacar, caso houvesse resistência ao golpe. No entanto, fora mais
fácil do que eles imaginaram. Os tanques do General Olímpio Mourão Filho invadiram as ruas, Jango deu o
fora e, voilà, o País estava salvo!
Para o professor Enrique Padrós, o comunismo
fora mera desculpa para o golpe. O que realmente motivou tudo isso foi o
objetivo de reconverter a economia aos padrões que interessavam aos EUA. E eles
não poderiam fazer isso com um presidente que queria a REFORMA AGRÁRIA, né. E o
que isso tem a ver com Boilesen? Tudo, meus amigos, tudo. Isso porque Boilesen
fazia parte do setor privado, bastante interessado em não ter seus lucros
reduzidos com os comunismos do
presidente deposto. A Ultragaz era uma das maiores empresas de gás do Brasil.
Boilesen só começou a colaborar com a ditadura
quando a coisa começou a ficar realmente preta: em 1969.
E apesar de o documentário ser sobre Boilesen, ele
também se aplicaria a muitos outros empresários que também tiveram o mesmo
comportamento. Por que Boilesen? Porque ele era bastante influente, estava
sempre andando com militares, estava visado. Enquanto os outros estavam na
surdina, ele estava em evidência. O que acabou lhe custando a vida.
Continuemos.
Carlos Lamarca ensinando táticas de guerrilha. |
Quando baixou o AI-5, suspendendo os direitos básicos
dos cidadãos, as coisas começavam a ficar tensas para os militares. Os grupos
revolucionários começaram a guerrilha urbana – a guerrilha rural se
consolidaria no começo dos anos 70, acredito – . Assaltos a bancos pelos
militantes desses grupos começaram a se tornar comuns. O governo ficou bege.
Eles não estavam preparados para isso. Era preciso fazer algo. Os banqueiros
estavam bastante amedrontados também, imagina esse bando de terrorista roubando
meu dinheiro. Juntou-se a fome à vontade de comer.
Neste contexto foi criado a OBAN (Operação
Bandeirante) com o objetivo de frear o terrorismo. Ele foi o embrião do
DOI-CODI, um dos órgãos mais repressivos da ditadura. Ok, agora precisamos de dinheiro para podermos trabalhar. Chama o empresariado paulista para
contribuir aí. – pensaram os militares. E foi assim que Delfim Neto, o
ministro da fazenda daquela época, convocou uma reunião com esses empresários. Enquanto
Neto falava, a bandeja passava e os empresários depositavam seus cheques.
Quando chegou a vez de Boilesen, ele pensou por alguns minutos e disse:
- Farei o cheque em dobro.
Lá pela metade do documentário, ficamos sabendo
que Boilesen era um anti-comunista pra valer. Dá para ver. Ex-comandantes da
OBAN declaram no documentário que Boilesen se sentia bastante à vontade naquele
ambiente, indo inclusive almoçar com o pessoal da OBAN. Um homem muito querido,
que cumprimentava desde os cabos até os coroneis.
No documentário, vários militantes declaram que
Boilesen fora visto nas sessões de tortura e, eventualmente, participado delas.
No entanto, não há nenhuma prova concreta de que isso tenha acontecido. Há
depoimentos bastante controversos em Cidadão
Boilesen, como o do Coronel Brilhante Ustra, comandante do DOI-CODI, ele só
teria visto Boilesen uma vez na OBAN. O filho de Boilesen nega que o pai
estivesse envolvido com as sessões de tortura.
Boilesen acabou pagando por um grupo, eu diria.
Ele pagou porque estava em evidência, enquanto outros empresários se escondiam.
Não que os comandos guerrilheiros não soubessem; pelo contrário. O documentário
nos mostra que eles começaram a ficar desconfiados assim que companheiros
conseguiam escapar de cercos e relatavam que sempre viam caminhões da Ultragaz
por perto. Ligaram uma coisa a outra: a empresa contribuía para a caixinha. Carlos Lamarca teria escrito
uma lista com três nomes de empresários que deveriam ser justiçados, entre eles
Boilesen. Todos haviam lhe avisado, mas Boilesen não se intimidava. Negou
segurança particular, dizia que podia resolver sozinho. Eis que um dia, dois
carros o cercam em uma rua em um bairro nobre de São Paulo. E o fuzilam e
metralham. Na época, a “brutalidade” do crime chocou as pessoas. Boilesen
levara mais de 20 tiros, e só no final lhe deram um tiro de misericórdia em sua
tempôra.
Boilesen deitado no chão, morto. |
Depois de assistir ao documentário, percebi que
o cerne da questão não é Boilesen, embora o documentário seja sobre ele. O
cerne é a colaboração do empresariado paulista na sujeira da OBAN. E aqui
podemos ver claramente o significado da palavra “ditadura civil-militar”. Ao
contrário do que muitos pensam, a ditadura só se manteve porque os cívis a
apoiaram, como o empresariado paulista por exemplo. A teia é bastante complexa.
Empresas como a General Motors
contribuíram para que se torturassem e matassem pessoas. Não é surpresa que
queiram nos ocultar isso, que Cidadão
Boilesen não seja conhecido como deveria.
É por isso que convido vocês a assistirem Cidadão Boilesen. Para que possamos ter
um olhar menos ingênuo e mais crítico em relação ao período militar e suas múltiplas
facetas. Não podemos culpar só os militares por tudo, uma vez que eles não fizeram
a ditadura sozinhos. Por mais que isso nos doa. Não podemos deixar a memória
para trás, embora existam muitas forças lutando para isso. Olhar para esse
passado é um exercício de cidadania. Negá-lo é ingenuidade. Ainda que não
tenhamos nascido nessa época, alguns de nós nascemos no período da abertura política,
nós fazemos parte disso. Minha mãe até me hoje me conta sobre suas aulas de
moral cívica na escola.
Que esse primeiro de abril não seja o dia da
mentira, da negação; mas de reflexão sobre a memória que nos contam.
Publicado por Jessica Bandeira.
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