O elenco de Beijo na boca, não! |
Lá estava eu na minha humilde residência assistindo à entrega do Oscar, quando de repente
o nome do cineasta francês Alain Resnais apareceu na homenagem aos que
faleceram.
- O QUÊ? O ALAIN RESNAIS MORREU??????
Com seis dias de atraso, eu ficava sabendo que
um dos meus cineastas favoritos havia falecido. Fiquei desorientada, mas não
era só eu. No twitter, o presidente
do Festival de Cannes, Gilles Jacob, despejava toda sua ira – tirando inclusive
uma selfie para mostrar o nível de
ódio que estava – porque as emissoras francesas não estavam homenageando o
cineasta como ele merecia.
Resnais merece flores, chocolates, tapete
vermelho, honrarias do presidente francês, François Hollande (fiquei sabendo
dessa hoje). Não só porque ele deu ao mundo um dos filmes mais bonitos dos anos
50, Hiroshima, meu amor; e sim porque
seu talento era infinito. Drama, comédia musical, teatro... Resnais sabia como
ninguém transitar por esses gêneros. Certa vez, Billy Wilder disse que o barato
de um diretor era poder fazer essa transição. Nos últimos dez anos, Alain
produziu filmes para todos os gostos, Beijo
na boca, não! é um desses felizes exemplos.
Libreto de Pas sur la bouche, 1925. |
O filme conta a história de Gilberte Valandray
(Sabine Azéma), uma rica maîtresse de
maison, que tem um casamento perfeito com Georges Valandray (Pierre
Arditi), um rico industrial que tem uma teoria muito especial sobre casamento.
Para ele, a mulher pertence ao primeiro que lhe esposar, e não importa o que
aconteça, ela sempre acaba voltando para esse cara. Por isso, ele autoriza, e
até mesmo se diverte, com os flertes de sua esposa. Que perigo ele corria, uma
vez que ele foi o primeiro homem de Gilberte? Contudo, o que ele não sabe é que
Gilberte havia tido um casamento não validado nos EUA com Eric Thomson (Lambert
Wilson). A confusão está armada quando Eric vai parar na casa da ex-mulher, uma
vez que Georges está fazendo negócios com ele.
O enredo por si só já nos faz mergulhar na loucuragem
que foram os anos 20. Em certos momentos, lembrou-me as comédias de Howard
Hawks em que a confusão é a mola propulsora da trama. No caso do nosso
filme/opereta, Gilberte e sua irmã, Mademoiselle Poumaillac (Isabelle Nanty),
tentam a qualquer custo impedir que Thomson abra a boca e acabe com o casamento comercial de margarina de
Gilberte.
Resnais sugerindo o caráter "corno" do personagem de Pierre Arditi. |
Pas sur la bouche é uma divertida aula de como as
pessoas pensavam e se comportavam nos anos 20. O personagem Charley é um bom
exemplo de como os autores da opereta conseguiram jogar toda a cultura dessa
época dentro da opereta, fazendo dela um sucesso. Charley é um pintor, o
fundador de uma nova onda, o cucuísmo
(piadinha com dadaísmo, mais alguém?). Ele é patrocinado pelos Valandray, o que
era bastante comum naquela época. O filme também mostra como os movimentos de
vanguarda eram apreciados por quem tinha dinheiro, ainda que não entendessem
nada. O barato era mostrar o quão moderno se podia ser, dizendo que gosta de
cucuísmo ou de pintura esférica. A cena da soirée
em que Charley irá se apresentar também é bastante interessante, pois evoca os
grandes saraus, uma tradição francesa muito apreciada desde o século XVII.
Eric Thomson se recusando a dar umas bitoquinhas. |
O filme certamente não seria o mesmo se o
elenco não fosse a “panelinha” de Resnais. Uma das melhores coisas desse
cineasta, para mim, é o fato de que ele trabalha com um elenco fixo. Um elenco
que funciona muito bem, tanto é que as dobradinhas se repetem em vários filmes.
Sabine Azéma, esposa do diretor e sua musa, está sensacional no papel de
Gilberte. Eu gosto muito da forma como ela consegue ter o timing certo na hora certa. Ela repete a dobradinha com Pierre
Arditi, seu par romântico em Aquela velha
canção, Smoking no smoking. Aqui,
meu momento fangirl: meu coração não
aguentou shippar esses dois. Eles combinam tanto! Isso fica bastante evidente
quando eles cantam juntos. Isabelle Nanty está engraçadíssima também no papel
de Mademoiselle Poumaillac. Ah, esse elenco é muito lindo, mesmo! Uma das
coisas que mais me entristecem é ficar sem os projetos futuros de Resnais, que
provavelmente envolveriam Sabine e Pierre.
Pierre Arditi e Sabine Azéma repetindo a dobradinha em Smoking, no smoking. |
Resnais, em entrevista, declarou que o que mais
gostava em espétaculos de Broadway e afins era que eles eram feitos com atores
que cantavam; não com cantores que atuavam. Todos os atores, menos Lambert
Wilson, não tinham experiência com o canto. O que é muita surpresa maravilhosa,
pois Bruno Pesery conseguiu extrair o melhor da voz de cada um, dentro das
possibilidades. Apesar de se intitular de “opereta”, Pas sur la bouche, o filme, não é bem uma opereta, uma vez que os atores cantam as músicas sem aquele
quêzinho de ópera. O que, de maneira alguma, destroi o que Maurice e André
escreveram nos anos 20. Outro ponto interessante foi que Resnais não mudou
nenhuma sílaba das músicas. Para quem conhece francês é bastante visível que o
vocabulário usado pelos personagens é antiquado, e Resnais escolheu manter esse
traço para nos fazer atentar para o fato de que o filme se passa em uma época
bem distante da nossa. As músicas de Pas
sur la bouche são muito ricas em rimas. (não essa a moral de uma música,
Jessica?) O que quero dizer é que o filme apresenta um desafio duplo ao
tradutor-legendista: 1) ele tem que manter o vocabulário antiquado; 2) na
medida do possível deve manter a rima entre os versos. A versão que tenho de Pas sur é a em português de Portugal e
devo dizer que o tradutor solucionou muito bem vários problemas dessa ordem.
Pas sur la bouche tem o capricho e o cuidado desse
diretor talentoso que foi Alain Resnais. Desde o cenário cuidadosamente
escolhido até as roupas das personagens (vermelho de Gilberte = paixão X azul
de Mademoiselle Poumaillac = inocência). É um ótimo filme para quem está
interessado em explorar mais a filmografia desse diretor. Já que não teremos
mais aquele gostinho de esperar pelo próximo filme, falemos então dos que já
saíram. Ainda que falar, falar e ver, ver, ver seus filmes não supra essa
saudade de um cineasta tão bom quanto Resnais, um dos últimos dessa geração de
cinema dos anos 50 e 60. Alain, obrigada por ser uma das pessoas que me iniciou
na vida severina de ser cinéfila.
Publicado por Jessica Bandeira.
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