Eu sou grande,
os filmes é que ficaram pequenos.
Começo esse post
de maneira pouco convencional, falando sobre alguém que não tem nada a ver com Crepúsculo dos deuses: Joan Crawford.
Quer dizer, ela não tem nada a ver diretamente. Indiretamente Joan tem, sim,
muito a ver com esse filme, pois ele representa um momento que ela e outras
atrizes estavam vivendo, ou seja, o ostracismo. Ontem estava revendo uma de
suas entrevistas para a BBC, em 1965 se não me falha a memória. Em certo
momento, ela começa a falar que sente falta de sua época inocente, os doces anos
30. Que tudo estava escancarado naqueles “dias de hoje” (imagina agora então) e
que os artistas de sua época tinham um mistério, que ninguém sabia nada sobre a
vida pessoal deles e que esse mistério era a graça de tudo. Crawford odiaria
Twitter, Instagram e Facebook, mas isso não vem ao caso. O fato é que Crepúsculo dos deuses contém essa
amargura, essa nostalgia desse tempo que está suavizado na fala de Crawford. É
a visão realista que por vezes nos choca e entristece neste clássico do diretor
Billy Wilder.
Para que o
cinema falado aparecesse, foi preciso que o cinema mudo morresse. Quer dizer,
“cinema mudo” não é exatamente um bom termo, pois os filmes tinham som, a trilha
sonora. Só não tinham diálogos. A partir do momento em que os atores começaram
a falar, decretou-se a morte de um tipo de atuação exagerada, com maquiagens
chamativas e expressões idem para suprir a falta de diálogo. Alguns artistas
conseguiram fazer essa transição cinema mudo à cinema falado bem, como Greta Garbo e Joan Crawford. No entanto,
para outros aquilo foi o fim de uma carreira, pois não conseguiram adaptar-se a
essa nova maneira de fazer cinema. Crepúsculo
dos deuses é uma ode a esse tempo dos filmes mudos, que parecia tão distante
das pessoas em 1951, imagine em 2013. A história da atriz decadente de cinema
mudo, Norma Desmond (Gloria Swanson), e de sua reclusão em sua casa na Sunset
Boulevard poderia ser a história de qualquer atriz daquela época. A começar
pela própria Gloria, que tinha uma história muito parecida com a de sua personagem.
Norma, assim como Gloria, não conseguira adaptar-se ao cinema falado, teve uma
carreira de sucesso nos filmes mudos e andava esquecida. A personagem vive com
seu mórdomo, Max (Erich Von Stroheim), que envia cartas a sua patroa como se
fossem de fãs. A vida de Norma reside na ilusão, nas saudades dos tempos em que
era uma grande estrela. O mundo havia mudado, mas para ela, ele nunca deixaria
de ser aquilo que viveu nos anos 20. Sua história se cruza com a de Joe Gilles
(William Holden), um roteirista pobre e falido, que vai parar acidentalmente na
casa da atriz. Eles se conhecem, e ele acaba aceitando reescrever um roteiro
criado por Norma sobre Salomé, descrito por ele como “um amontoado de tramas
melodramáticas”. Os anos 20 se foram, contudo, Norma nunca os deixou. As tramas
melodramáticas criadas por Norma em seu roteiro são um dos elementos que nos
mostram como essa atriz não conseguiu seguir em frente, visto que os filmes
mudos eram caracterização pelo excesso do melodrama. Logo que começa a remendar
o roteiro da atriz, Joe percebe que está preso numa armadilha. E não sairá vivo
dela.
O início desse
filme é muito parecido com o de Pacto de
sangue, outro filme de Billy, em que o diretor já nos dá de antemão o arco
do filme, neste caso, a morte de Joe. Alguns podem pensar que toda graça se
perdeu, mas acho que não, pois nós temos o fato [a morte] e não sabemos como
aconteceu. Você quer saber como aconteceu? Pois assista ao filme! Além disso,
outro ponto em comum com Pacto é a
narração feita pelo protagonista. Gilles narra sua história com toda a ironia
possível, às vezes acho que o personagem se mistura com Billy tamanha amargura
de suas críticas dirigidas à Hollywood. Falarei disso a seguir. A primeira cena
do filme, em que vemos a polícia chegando a Sunset e o problema que nos é
colocado na tela, tornou-se clássica. Isso porque quando a polícia chega, vemos
um corpo flutuando dentro de uma piscina. Era Gilles, morto com um tiro. Billy
filmou a cena dos policiais olhando o corpo como se a câmera estivesse debaixo
d’água, captando o rosto de Gilles morto. Na verdade, essa cena foi filmada com
um jogo de espelhos, pois debaixo d’água era impossível executá-la. Ela foi
repetida na última versão de O grande
Gatbsy, com Leonardo di Caprio, uma ótima homenagem, aliás. Wilder queria começar
com Joe nos narrando a história no necrotério, a câmera mostraria o corpo
tapado e a etiqueta no pé identificando o morto. Mas a Dona Hollywood jamais
permitiria algo tão explícito em relação à morte (lembremos-nos da velha e boa
censura), logo a estratégia foi abortada.
Crepúsculo dos deuses está
sempre jogando com duas visões distintas de cinema e de época: Norma e Max
simbolizando o cinema mudo; Gilles a nova Hollywood. O famoso diálogo, em que a
frase que começa esse post é dita, é um claro exemplo desse embate. “Não
bastavam os olhos, eles queriam as orelhas. Então eles começaram a falar,
falar!”. É muito difícil falar sobre esse diálogo, pois todas as frases são
significativas e tocam em feridas de Hollywood. “Destruíram os ídolos, os
Fairbanks, os Valentinos!”. Contudo, esse não é o único exemplo desse realismo hollywoodiano de Billy. Na cena
em que o protagonista vai a uma festa de ano novo, organizada por seu amigo
Artie Green, os convidados estão ao piano cantando a seguinte música:
Hollywood não foi muito boa conosco
Não nos deu piscinas, dinheiro, fama
O ponto alto da
amargura hollywoodiana acontece quando Norma vai ao seu antigo estúdio, a
Paramount Pictures, entregar seu roteiro de Salomé pessoalmente a Cecil B. DeMille. Aqui novamente vemos a realidade se confundindo com a ficção, pois Cecil
era diretor na vida real e até mesmo trabalhou com Gloria Swanson. Ela acredita
que o diretor está interessado em seu roteiro, pois o estúdio já ligou mais de
dez vezes para sua casa. A ironia é que as ligações foram feitas por causa do
interesse da Paramount em usar o velho carro de Norma em um filme de Crosby. A
atriz chega ao estúdio, mas o porteiro não quer deixá-la entrar. Um guarda dos
tempos de Norma a reconhece e abre o portão. “Ensine boas maneiras a seu
colega, Josey. Se não fosse por mim, ele não teria seu emprego”. Aqui começamos
a ver o toque de desprezo com que a época de Norma e ela mesma são tratadas
pelos outros. O funcionário nem sequer imagina uma vida em que os filmes não
são falados, muito menos uma tal de Norma Desmond. Ao entrar no set em que DeMille está rodando um filme, Desmond revive seus momentos de glória. As pessoas
se aproximam, perguntam sobre ela. Finalmente, após 30 anos, ela se sente em
casa. Enquanto todos a paparicam, o secretário DeMille avisa sobre o incidente
com o carro. Em sua fala, podemos ver o desprezo pela era muda. DeMille o
repreende dizendo: “Já não basta 20 milhões de fãs terem dispensado-a?”. Norma
sai da Paramount crente de que irá conseguir voltar às telas. Mais uma de suas
ilusões.
(Gloria Swanson e Cecil B. DeMille)
De volta a
Sunset, Norma se submete a todo tipo de tratamento estético para ficar pronta
para rodar seu filme. Aqui também podemos ver uma crítica à severidade com que
Hollywood tratava suas musas, uma vez que elas sempre precisam estar lindas e
impecáveis. Só que Norma não era mais uma garota, tinha 40 anos, por isso o
negócio seria muito mais difícil para ela. Hollywood, como vocês sabem,
descartava suas estrelas quando estas já entravam na casa dos 30, imagina 40! A
obstinação com que ela se joga nos tratamentos estéticos revela essa proibição
da velhice em Hollywood. É proibido ser velha. Queremos ver rostos jovens, cada
vez mais jovens. Assim, Norma poderia muito bem simbolizar Joan Crawford, Bette
Davis Barbara Stanwyck e outras estrelas que sofriam por só poder interpretar
papeis de “mães” na tela.
As pessoas
piraram com Crepúsculo dos deuses.
Ninguém gostou. Era como se um balde d’água fria fosse jogado no cinema
americano, revelando o pior que havia naquele meio que parecia tão inocente. Talvez a vinda de Billy ter da Europa e a
dificuldade para fazer carreira em Hollywood, tenha contribuído para essa visão
desiludida de Hollywood. Ela não passava
de um grande negócio. Os filmes eram negócios, ou rendiam milhões ou eram
fracassos. Suas estrelas representavam uma franquia e, no momento em que não
representavam mais eram descartadas como lixo.
O tempo tornou Crepúsculo dos deuses um clássico. Billy
Wilder merece toda admiração do mundo pela coragem de sambar na cara de
Hollywood. Depois, a televisão iria chegar e ocupar o lugar do cinema, era só
uma questão de tempo. Ninguém podia ser hipócrita a ponto de negar que uma
coisa sucedia a outra.
Publicado por: Jessica Bandeira
PS: Como o leitor pode notar pelo tamanho do post, a autora é doente por esse filme, tendo escrito os diálogos citados de cabeça, sem auxílio do DVD. Gostaria de ter escrito mais, mas seus pobres dedos de tradutora clamavam por descanso.
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