Era uma vez uns
jovens com um milhão de ideias na cabeça, cansados daquela gente elegante,
bonita e sincera, os grandes magnatas dos estúdios de Hollywood. O advento da
televisão foi o primeiro sinal de que os olhos do mundo não estavam mais
voltados para o cinema, como diria Norma Desmond. Os estúdios passaram a
investir no technicolor, cinemascope, entre outros para trazer as
pessoas de volta às salas de cinema. Não deu muito certo. Para que ir ao cinema
se posso ficar em casa assistindo I love
Lucy? Os anos 60 chegaram e parecia que as comédias protagonizadas por
Doris Day e Rock Hudson datavam da época das cavernas. O mundo pedia por
mudanças e o cinema não tardou a reivindicar mudanças. Chega desses filmes
comerciais e dessas estrelas que não nos representam.
O pontapé
inicial para essa mudança na maneira de se ver e fazer cinema foi dado na
França com a nouvelle vague. Quando
Truffaut criou o primeiro filme da série protagonizada por Jean-Pierre Léaud, Os incompreendidos, o conceito de
“diretor autor” começou a circular. Ele era utilizado para designar um tipo de
filme onde havia a visão do diretor, algo mais introspectivo, pessoal. No
entanto, a nouvelle vague só foi ser levada a sério quando Godard lançou Acossado, em 1962. As pessoas piraram.
Como assim esse filme que quase não tem corte entre as cenas? E essas tomadas
filmadas na rua? Que isso? Aposto que muitas pessoas se levantaram no meio da
sessão e saíram, pensando que aquilo ali poderia ser tudo, menos cinema. Mas
não tinha o que fazer: as mudanças no cinema pediam passagem.
É claro que os
EUA tentaram frear a onda até onde deu. Dizer adeus a suas estrelas não era
fácil. Principalmente se as novas estrelas não tinham cara de estrelas, e sim
de pessoas normais, que você encontra na rua. Além disso, como os magnatas dos
estúdios poderiam deixar esses jovens malucos tomarem conta do seu estúdio,
fazer uma bagunça? Não dava. Além disso, esse pessoal era perigoso, pois
queriam falar sobre drogas, revolução sexual, tudo que a velha Hollywood gostava
de ignorar. Não, gente, vamos continuar com nossos astros juvenis, como Sandra
Dee.
Graças a Deus
surgiu um cara chamado Mike Nichols no meio de tudo isso, que dirigiu A primeira noite de um homem. E
transformou o comportado cinema americano. Nichols explodiu a bomba através de
um filme com um protagonista com mais cara de comum impossível (Dustin
Hoffman), que se apaixona pela amiga dos pais, a predatória Sra.Robinson.
Aquilo chocou a sociedade americana. Paradoxalmente ao choque, o filme foi um
sucesso. Aos poucos, Hollywood foi percebendo que valia a pena investir
naqueles malucos, até que eles produziam sucesso. Depois foi a vez de Bonnie & Clyde – Uma rajada de balas
explodir de vez os valores cinematográficos. Pela primeira vez a violência era
mostrada tão explicitamente na tela (a cena em que Clyde e Bonnie são baleados
diversas vezes causou o maior furor), em uma época em que a guerra do Vietnã
estava a pleno vapor.
Perdidos na noite pegou
carona com esse novo cinema. Hoje, depois de uns bons 40 anos, ele nos parece
tão emblemático do final de uma década. Emblemático de uma maneira toda
especial, pois foi o primeiro de um grande estúdio a tratar da homossexualidade
e ter notoriedade, levando o prêmio de melhor filme no Oscar de 1970. Há outro
filme britânico desconhecido que tratou do tema, Três mulheres na intimidade, mas parece não ter conseguido atingir
notoriedade. Há quem se pergunte como Perdidos levou o Oscar, já que a Academia
tende a ser tão conservadora. Minha teoria é de que até mesmo os defensores do
velho cinema se renderam a este filme tão bonito.
O filme conta a
história de Joe Buck (John Voight) que decide largar sua vida no Texas para
tentar a sorte em Nova York. Sua teoria é de que irá conseguir seduzir todas as
coroas solitárias da cidade com seu charme texano, servindo de michê, e assim
ficará milionário. No entanto, a vida na cidade que nunca dorme parece ser
muito movimentada e as mulheres espertas demais para caírem no golpe do texano
solitário. Assim, Joe começa a vagar sem perspectivas pelas ruas até encontrar
Ritzo Ratzo (Dustin Hoffman), um cara tão ferrado como ele.
Antes de se
focar na decadência da cidade e dos personagens, Perdidos nos mostra a visão idealista de Buck em relação à vida. É
durante seu trajeto em direção à NY que começamos a perceber que esse cowboy texano no fundo é como os jovens
dos anos 60: alguém que não tem medo de largar tudo e ir atrás de seu sonho.
Mesmo que ele seja seduzir as coroas. Esse idealismo é ressaltado pela música
de Harry Nilsson, composta especialmente para o filme, Everybody’s talkin. Do Texas até NY é essa música que ouvimos. É
interessante perceber a ironia da cena em que Buck caminha pela cidade: a
música diz “todos estão falando comigo, eu não ouço nada que do que eles dizem,
apenas os ecos na minha mente” e ao fundo podemos ouvir o barulho dos carros,
das pessoas. Além da música, temos os flashbacks
intercalados com presente, que aparecem de repente no meio de uma cena
cortando-a bruscamente, que nos ajudam a conhecer um pouco mais da história de
Buck. Esses flashbacks são, em geral,
muito rápidos, como se a mente do personagem trabalhasse a mil quilômetros por
hora.
Você já sente
que esse filme é diferente no momento em que Buck, sem perceber, senta em cima
do controle remoto, que começa a trocar de canal loucamente. Vemos propagandas
de sabão em pó, programas em que cachorros usam perucas, sexo. Até Bette Davis
no filme Vitória Amarga aparece! Uma
maneira bem sutil de criticar uma sociedade tão vazia ao ponto de assistir
programas em que cachorros usam perucas. A televisão deixou essas pessoas
burras demais. O produto vem pronto, e você só engole. A presença de Bette,
para mim, é uma oposição a toda essa vulgarização, pois esse filme evoca a
Hollywood de ouro, da ingenuidade.
Ao encontrar
Ratzo, a mudança no tom do filme se concretiza. Agora a coisa ficou séria. Se
antes parecia engraçadinho as investidas de Buck nas coroas, agora isso começa
a ter um ar triste. O personagem vai percebendo que não vai conseguir nada com
essas mulheres, mas Ratzo parece ser a luz no túnel. Abrindo um pequeno
parêntese para comentar sobre a atuação de Dustin. Ele tinha recém-saído de A primeira noite de um homem pensando
que esse era o único filme que faria. Hoffman não queria se render ao cinema, sua
essência era a Broadway. No entanto, o papel de Ratzo chamou a atenção do ator,
que convenceu o produtor a lhe dar o papel marcando um encontro em um lugar
sujo. Quando o produtor chegou, Dustin estava com a barba por fazer (para dar
mais realismo, já que o produtor o via como Benjamin de A primeira noite e isso não o convencia que Dustin poderia
interpretar um personagem tão diferente) e começou a interpretar o papel para
ele. Não tinha para ninguém, o papel só podia ser dele. Voltando ao filme,
Ratzo convence Buck de que pode agenciá-lo e para isso pede 20 dólares
emprestados, assim, para cobrir as despesas desse agenciamento. Na verdade,
Buck vai parar no apartamento de um maluco fanático, que o obriga a ajoelhar e
rezar para uma imagem de um Jesus com um néon vermelho nas costas. A cena
inteira da reza parece uma viagem de LSD, misturando os flashbacks de Buck com a loucura do velho. Algo que poderia sugerir
uma crítica ao fanatismo religioso. O personagem sai correndo desse apartamento
e descobre que está duro, que Ratzo deu o golpe nele e que não tem dinheiro nem
para pagar o hotel.
Esse Jesus, cara.
Na intenção de
mostrar o que acontecia em NY naquela época, a câmera de Perdidos se desloca
para uma dessas festas tipicamente anos 60, ou seja, com uma gente elegante, louca,
bonita e sincera, além de todo o tipo de droga imaginável. É minha parte
predileta do filme. Às vezes acho que o filme é mais um documento do final dos
anos 60 do que uma história ambientada no submundo de NY. O diretor do filme,
John Schlesinger, acertou em cheio ao procurar o ambiente frequentado pela Factory de Andy Warhol, a Filmways
Studio, no Harlem. Aliás, nessa festa podemos ver alguns dos membros da Factory
como Viva e Ultra Violet. É um ambiente escuro, que transforma as pessoas.
Exergamos várias delas encerradas em seus mundos, talvez em outra dimensão.
Enquanto Ratzo ataca a mesa de comes e bebes, Buck vai dar uma volta e conhecer
o lugar. Em determinado momento, Shirley (Brenda Vaccaro), uma completa
desconhecida, entrega um cigarro para o personagem. Sua ingenuidade não o deixa
perceber que se trata de maconha. Buck dá uma tragada e começa a enxergar o
mundo com outros olhos. Chegamos ao ponto alto do filme: a cena entre Vaccaro e
Voight. Rola um clima entre os dois personagens, que vão para a casa de
Shirley. Apesar de se dizer um galanteador com seu charme texano, Buck não
consegue transar com a desconhecida. Ele está frustrado com sua falha, e
Shirley sugere que eles durmam um pouco. Buck recusa e, então, eles começam a
jogar algo parecido com scrabble, em que você tem que formar palavras com as
peças. O personagem não sabe que palavra formar, mas Shirley sugere para
provocá-lo: gay. Através desse jogo,
ela começa a insinuar a homossexualidade, o que o deixa ainda mais furioso,
querendo provar sua masculinidade. No fim das contas, ele consegue provar,
oferecendo à Shirley a melhor noite de sua vida. É interessante perceber que o
diretor coloca nessa cena um pouco de sua vida pessoal (e que diretor não faz
isso?). Schlesinger era homossexual na vida real e temia a recepção do filme.
Como colocar um homem do Texas, uma imagem viril, recebendo sexo oral de um
garoto no banheiro de um cinema sem que as pessoas cuspam no filme e o
desprezem? Por isso, o suposto relacionamento homossexual entre Voight e
Hoffman é sutilmente sugerido, deixado ao espectador que tire suas próprias
conclusões.
Vaccaro e Voight
Voight e Hoffman
praticamente competiram entre si quando fizeram o filme. Eles competiram pela
melhor perfomance, no sentido de não quererem serem passados para trás pelo
outro e receberem favorecimento na hora da montagem do filme. Podemos ver todo
o talento dos atores na tela, desde a cena em que atravessam a rua e que Dustin
é quase atropelado e desconta toda a raiva no taxista. Aquilo foi de verdade. O
diretor queria que eles filmassem na rua, tornando quase impossível atravessar.
Quando conseguiram que o sinal fechasse, um carro ultrapassou a faixa de
segurança quase atropelando Dustin. Ele ficou furioso e disse: I’m walkin’here! O resultado, podemos
ver no filme. Para terminar, gostaria de ilustrar o que ocorreu no Oscar de
1970. Na coxia, John Voight encontrou Fred Astaire. “Eu acompanho e você
entrega, tudo bem?” – disse Astaire. John ficou apavorado: “Não, você entrega e
eu acompanho”. Astaire era um dos ídolos de Voight. Não eram Voight e Astaire
que se encontravam e sim a velha Hollywood e a nova. Fred elogiou a perfomance
de John e, em seguida, eles foram para o palco entregar o prêmio. Lembro-me de
ter lido que Voight respeitava muito essas pessoas, pois elas haviam criado os
pilares do cinema. E é verdade. Vamos honrar Perdidos na noite por questionar esse modelo, mas sem esquecer o
valor que ele tem para a história do cinema.
Publicado por: Jessica Bandeira.
Parece não haver um relacionamento gay entre os protagonistas.
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