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quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Perdidos na Noite (1969)


Era uma vez uns jovens com um milhão de ideias na cabeça, cansados daquela gente elegante, bonita e sincera, os grandes magnatas dos estúdios de Hollywood. O advento da televisão foi o primeiro sinal de que os olhos do mundo não estavam mais voltados para o cinema, como diria Norma Desmond. Os estúdios passaram a investir no technicolor, cinemascope, entre outros para trazer as pessoas de volta às salas de cinema. Não deu muito certo. Para que ir ao cinema se posso ficar em casa assistindo I love Lucy? Os anos 60 chegaram e parecia que as comédias protagonizadas por Doris Day e Rock Hudson datavam da época das cavernas. O mundo pedia por mudanças e o cinema não tardou a reivindicar mudanças. Chega desses filmes comerciais e dessas estrelas que não nos representam.



 O pontapé inicial para essa mudança na maneira de se ver e fazer cinema foi dado na França com a nouvelle vague. Quando Truffaut criou o primeiro filme da série protagonizada por Jean-Pierre Léaud, Os incompreendidos, o conceito de “diretor autor” começou a circular. Ele era utilizado para designar um tipo de filme onde havia a visão do diretor, algo mais introspectivo, pessoal. No entanto, a nouvelle vague só foi ser levada a sério quando Godard lançou Acossado, em 1962. As pessoas piraram. Como assim esse filme que quase não tem corte entre as cenas? E essas tomadas filmadas na rua? Que isso? Aposto que muitas pessoas se levantaram no meio da sessão e saíram, pensando que aquilo ali poderia ser tudo, menos cinema. Mas não tinha o que fazer: as mudanças no cinema pediam passagem.

É claro que os EUA tentaram frear a onda até onde deu. Dizer adeus a suas estrelas não era fácil. Principalmente se as novas estrelas não tinham cara de estrelas, e sim de pessoas normais, que você encontra na rua. Além disso, como os magnatas dos estúdios poderiam deixar esses jovens malucos tomarem conta do seu estúdio, fazer uma bagunça? Não dava. Além disso, esse pessoal era perigoso, pois queriam falar sobre drogas, revolução sexual, tudo que a velha Hollywood gostava de ignorar. Não, gente, vamos continuar com nossos astros juvenis, como Sandra Dee.

Graças a Deus surgiu um cara chamado Mike Nichols no meio de tudo isso, que dirigiu A primeira noite de um homem. E transformou o comportado cinema americano. Nichols explodiu a bomba através de um filme com um protagonista com mais cara de comum impossível (Dustin Hoffman), que se apaixona pela amiga dos pais, a predatória Sra.Robinson. Aquilo chocou a sociedade americana. Paradoxalmente ao choque, o filme foi um sucesso. Aos poucos, Hollywood foi percebendo que valia a pena investir naqueles malucos, até que eles produziam sucesso. Depois foi a vez de Bonnie & Clyde – Uma rajada de balas explodir de vez os valores cinematográficos. Pela primeira vez a violência era mostrada tão explicitamente na tela (a cena em que Clyde e Bonnie são baleados diversas vezes causou o maior furor), em uma época em que a guerra do Vietnã estava a pleno vapor.

Perdidos na noite pegou carona com esse novo cinema. Hoje, depois de uns bons 40 anos, ele nos parece tão emblemático do final de uma década. Emblemático de uma maneira toda especial, pois foi o primeiro de um grande estúdio a tratar da homossexualidade e ter notoriedade, levando o prêmio de melhor filme no Oscar de 1970. Há outro filme britânico desconhecido que tratou do tema, Três mulheres na intimidade, mas parece não ter conseguido atingir notoriedade. Há quem se pergunte como Perdidos levou o Oscar, já que a Academia tende a ser tão conservadora. Minha teoria é de que até mesmo os defensores do velho cinema se renderam a este filme tão bonito.

O filme conta a história de Joe Buck (John Voight) que decide largar sua vida no Texas para tentar a sorte em Nova York. Sua teoria é de que irá conseguir seduzir todas as coroas solitárias da cidade com seu charme texano, servindo de michê, e assim ficará milionário. No entanto, a vida na cidade que nunca dorme parece ser muito movimentada e as mulheres espertas demais para caírem no golpe do texano solitário. Assim, Joe começa a vagar sem perspectivas pelas ruas até encontrar Ritzo Ratzo (Dustin Hoffman), um cara tão ferrado como ele.

Antes de se focar na decadência da cidade e dos personagens, Perdidos nos mostra a visão idealista de Buck em relação à vida. É durante seu trajeto em direção à NY que começamos a perceber que esse cowboy texano no fundo é como os jovens dos anos 60: alguém que não tem medo de largar tudo e ir atrás de seu sonho. Mesmo que ele seja seduzir as coroas. Esse idealismo é ressaltado pela música de Harry Nilsson, composta especialmente para o filme, Everybody’s talkin. Do Texas até NY é essa música que ouvimos. É interessante perceber a ironia da cena em que Buck caminha pela cidade: a música diz “todos estão falando comigo, eu não ouço nada que do que eles dizem, apenas os ecos na minha mente” e ao fundo podemos ouvir o barulho dos carros, das pessoas. Além da música, temos os flashbacks intercalados com presente, que aparecem de repente no meio de uma cena cortando-a bruscamente, que nos ajudam a conhecer um pouco mais da história de Buck. Esses flashbacks são, em geral, muito rápidos, como se a mente do personagem trabalhasse a mil quilômetros por hora.

Você já sente que esse filme é diferente no momento em que Buck, sem perceber, senta em cima do controle remoto, que começa a trocar de canal loucamente. Vemos propagandas de sabão em pó, programas em que cachorros usam perucas, sexo. Até Bette Davis no filme Vitória Amarga aparece! Uma maneira bem sutil de criticar uma sociedade tão vazia ao ponto de assistir programas em que cachorros usam perucas. A televisão deixou essas pessoas burras demais. O produto vem pronto, e você só engole. A presença de Bette, para mim, é uma oposição a toda essa vulgarização, pois esse filme evoca a Hollywood de ouro, da ingenuidade.

Ao encontrar Ratzo, a mudança no tom do filme se concretiza. Agora a coisa ficou séria. Se antes parecia engraçadinho as investidas de Buck nas coroas, agora isso começa a ter um ar triste. O personagem vai percebendo que não vai conseguir nada com essas mulheres, mas Ratzo parece ser a luz no túnel. Abrindo um pequeno parêntese para comentar sobre a atuação de Dustin. Ele tinha recém-saído de A primeira noite de um homem pensando que esse era o único filme que faria. Hoffman não queria se render ao cinema, sua essência era a Broadway. No entanto, o papel de Ratzo chamou a atenção do ator, que convenceu o produtor a lhe dar o papel marcando um encontro em um lugar sujo. Quando o produtor chegou, Dustin estava com a barba por fazer (para dar mais realismo, já que o produtor o via como Benjamin de A primeira noite e isso não o convencia que Dustin poderia interpretar um personagem tão diferente) e começou a interpretar o papel para ele. Não tinha para ninguém, o papel só podia ser dele. Voltando ao filme, Ratzo convence Buck de que pode agenciá-lo e para isso pede 20 dólares emprestados, assim, para cobrir as despesas desse agenciamento. Na verdade, Buck vai parar no apartamento de um maluco fanático, que o obriga a ajoelhar e rezar para uma imagem de um Jesus com um néon vermelho nas costas. A cena inteira da reza parece uma viagem de LSD, misturando os flashbacks de Buck com a loucura do velho. Algo que poderia sugerir uma crítica ao fanatismo religioso. O personagem sai correndo desse apartamento e descobre que está duro, que Ratzo deu o golpe nele e que não tem dinheiro nem para pagar o hotel.

Esse Jesus, cara. 

Na intenção de mostrar o que acontecia em NY naquela época, a câmera de Perdidos se desloca para uma dessas festas tipicamente anos 60, ou seja, com uma gente elegante, louca, bonita e sincera, além de todo o tipo de droga imaginável. É minha parte predileta do filme. Às vezes acho que o filme é mais um documento do final dos anos 60 do que uma história ambientada no submundo de NY. O diretor do filme, John Schlesinger, acertou em cheio ao procurar o ambiente frequentado pela Factory de Andy Warhol, a Filmways Studio, no Harlem. Aliás, nessa festa podemos ver alguns dos membros da Factory como Viva e Ultra Violet. É um ambiente escuro, que transforma as pessoas. Exergamos várias delas encerradas em seus mundos, talvez em outra dimensão. Enquanto Ratzo ataca a mesa de comes e bebes, Buck vai dar uma volta e conhecer o lugar. Em determinado momento, Shirley (Brenda Vaccaro), uma completa desconhecida, entrega um cigarro para o personagem. Sua ingenuidade não o deixa perceber que se trata de maconha. Buck dá uma tragada e começa a enxergar o mundo com outros olhos. Chegamos ao ponto alto do filme: a cena entre Vaccaro e Voight. Rola um clima entre os dois personagens, que vão para a casa de Shirley. Apesar de se dizer um galanteador com seu charme texano, Buck não consegue transar com a desconhecida. Ele está frustrado com sua falha, e Shirley sugere que eles durmam um pouco. Buck recusa e, então, eles começam a jogar algo parecido com scrabble, em que você tem que formar palavras com as peças. O personagem não sabe que palavra formar, mas Shirley sugere para provocá-lo: gay. Através desse jogo, ela começa a insinuar a homossexualidade, o que o deixa ainda mais furioso, querendo provar sua masculinidade. No fim das contas, ele consegue provar, oferecendo à Shirley a melhor noite de sua vida. É interessante perceber que o diretor coloca nessa cena um pouco de sua vida pessoal (e que diretor não faz isso?). Schlesinger era homossexual na vida real e temia a recepção do filme. Como colocar um homem do Texas, uma imagem viril, recebendo sexo oral de um garoto no banheiro de um cinema sem que as pessoas cuspam no filme e o desprezem? Por isso, o suposto relacionamento homossexual entre Voight e Hoffman é sutilmente sugerido, deixado ao espectador que tire suas próprias conclusões.


 Vaccaro e Voight


Voight e Hoffman praticamente competiram entre si quando fizeram o filme. Eles competiram pela melhor perfomance, no sentido de não quererem serem passados para trás pelo outro e receberem favorecimento na hora da montagem do filme. Podemos ver todo o talento dos atores na tela, desde a cena em que atravessam a rua e que Dustin é quase atropelado e desconta toda a raiva no taxista. Aquilo foi de verdade. O diretor queria que eles filmassem na rua, tornando quase impossível atravessar. Quando conseguiram que o sinal fechasse, um carro ultrapassou a faixa de segurança quase atropelando Dustin. Ele ficou furioso e disse: I’m walkin’here! O resultado, podemos ver no filme. Para terminar, gostaria de ilustrar o que ocorreu no Oscar de 1970. Na coxia, John Voight encontrou Fred Astaire. “Eu acompanho e você entrega, tudo bem?” – disse Astaire. John ficou apavorado: “Não, você entrega e eu acompanho”. Astaire era um dos ídolos de Voight. Não eram Voight e Astaire que se encontravam e sim a velha Hollywood e a nova. Fred elogiou a perfomance de John e, em seguida, eles foram para o palco entregar o prêmio. Lembro-me de ter lido que Voight respeitava muito essas pessoas, pois elas haviam criado os pilares do cinema. E é verdade. Vamos honrar Perdidos na noite por questionar esse modelo, mas sem esquecer o valor que ele tem para a história do cinema. 

Publicado por: Jessica Bandeira.

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